ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS - Rui Sanches

Rui Sanches, artista
(entrevista realizada em Maio 2010)

O Rui Sanches fez a sua formação nos EUA, não foi?

R: Em Inglaterra e nos EUA.

E portanto não foi colega dos restantes artistas do grupo.

R: Sou um páraquedista.

Acabou por se juntar ao grupo só em 1985?

R: A única exposição que fiz com todos eles foi o “Arquipélago”. Nunca tinha feito nada antes, e depois participei em algumas exposições com alguns dos artistas mas não mais com o grupo todo.

Houve depois do “Arquipélago” uma outra chamada “Cumplicidades”.

R: Exactamente. Foi na Galeria Valentim de Carvalho. Mas aí só com o Pedro Cabrita Reis, o Pedro Calapez e o Zé Pedro Croft.

Sobre a exposição não há assim muita documentação, a não ser um vasto conjunto de artigos que saíram em jornais à época, feitos pelo Alexandre Melo e pelo João Pinharanda que acompanharam muito de perto o grupo. Li uma entrevista que eles fizeram a dois grupos de artistas – por um lado vocês e por outro o Pedro Casqueiro, a Ana Vidigal, a Madalena Coelho – em que se afirmavam com uma enorme auto-determinação e segurança em relação ao seu trabalho, dizendo mesmo “Nós somos os melhores”. O Rui nessa altura tinha também essa perspectiva sobre si e sobre o seu trabalho?

R: Não, acho que não tinha.

Não tinha ou não a manifestava?

R: Não tinha. Acho que nunca tive assim essa visão empolgada de mim próprio. Acho que também tinha a ver com uma atitude mediática, de aparecer com esse carácter provocatório.

E o que é que o leva a juntar-se ao grupo? Já os conhecia?

R: O primeiro que eu conheci foi o Pedro Cabrita Reis, que conheci através de amigos comuns. Quando eu estava em Inglaterra, o Pedro Cabrita Reis dirigia a revista da Associação de Estudantes das Belas Artes e pediu-me para escrever uns artigos de Londres sobre exposições. Colaborei com essa revista durante algum tempo, e depois quando voltei dos EUA (no Verão de 1982) comecei a trabalhar e conheci o Pedro Calapez (através do André Gomes, que eu já conhecia) e que me convidou para fazer uma exposição na Diferença. Através dessa exposição conheci depois o José Pedro Croft e a Rosa Carvalho e os outros. Portanto, foi sendo assim aos poucos. Nessa altura é que eles me falaram que queriam fazer uma exposição, em 1985, e me perguntaram se eu também queria participar.

Então acabou por ser uma coisa mais circunstancial, de amizade, de partilha de afinidades.

R: Sim. Fui-me dando com eles, portanto, foi mais uma questão de amizade do que outra coisa. Nunca falámos propriamente de programas estéticos, nem políticos, nem coisa nenhuma.

Essa era uma questão que eu também tinha em relação a este grupo (e a outros seus contemporâneos) que contrariamente ao que se passa com outros grupos que nós conhecemos bem (olhando um bocadinho para a história da primeira metade do século XX) em que todos tinham uma espécie de discurso programático, tinham até manifestos em alguns casos. Nestes grupos dos anos 80 não havia isso ...

R: Talvez os Homeoestéticos fossem um bocadinho mais manifestantes. Mas no nosso caso não, porque a partir do momento em que estávamos juntos, acompanhávamos o que os outros estavam a fazer. Havia um interesse mútuo pelos trabalhos uns dos outros. E a partir do momento em que decidimos fazer a exposição juntos, houve então uma série de reuniões, conversas, mas mais a nível organizativo, logístico, tipo “faz-se catálogo, não se faz, com quem é que se fala, como é que se faz a montagem, dinheiro para o catálogo”.

A propósito do catálogo, o catálogo não é propriamente um objecto que documente a exposição.

R: Não. Eu acho que isso teve a ver com os ritmos de trabalho de cada um. Como se vê na fotografia as peças do Pedro Cabrita estão fotografadas muito em progresso, as do Zé Pedro Croft estavam mais avançadas mas penso que ainda também em progresso. E a ideia era que o catálogo estivesse pronto na inauguração (isso fazia também parte da estratégia de imagem da exposição) Lembro-me que uma coisa de que falávamos muito era de uma ideia de profissionalismo, de fazermos as coisas bem feitas e não ser assim uma coisa mais ou menos e meio amadorística.

E em relação às pessoas que contribuíram para o catálogo com textos, em função de que objectivos é que definiram que seriam aquelas? Que tipo de abordagem procuravam?

R: A exposição estava para ir ao Porto a seguir. A ideia era fazer a exposição na SNBA e depois levá-la à Árvore, no Porto. A ideia foi escolher uma pessoa ligada a Lisboa e outra ligada ao Porto – o Fernando Azevedo e o Bernardo Pinto de Almeida como estando ligados às duas instituições – e a Filomena foi uma escolha consensual entre todos, porque não era um crítico propriamente, porque era uma pessoa que nós conhecíamos e de quem gostávamos e portanto fez todo o sentido convidá-la.

Em relação às imagens da exposição (eu só vi agora um conjunto de imagens que foram, à época, publicadas na imprensa e mesmo essas não são muito reveladoras). No entanto, nessas imagens fica-se com a sensação de que houve ali uma estratégia deliberada de tentar criar, o mais possível, pontos de diálogo entre as obras (até porque foram excluídas na montagem, aquelas divisórias que normalmente eram usadas para as exposições na SNBA). Portanto havia essa preocupação?

R: A preocupação era fazer uma coisa completamente diferente. A ideia era não ser uma exposição salão mas fazer uma coisa com o espaço todo aberto, em que se percebe-se a grandiosidade daquele espaço. E depois colocar lá as nossas peças em diálogo umas com as outras e em relação com a própria escala do espaço. As peças foram todas feitas para a exposição, pensadas, sabendo-se que iriam ser mostradas ali. E depois a relação entre elas foi muito uma coisa intuitiva, discutida entre nós. Foi uma coisa sem grande programa, não foi muito pensado nesse sentido, foi mais intuitiva.

E, ao produzirem as peças especificamente para o contexto da exposição, não estariam vocês a responder a nenhum programa?

R: Não. Nada. Nós nem sabíamos exactamente o que é que os outros estavam a fazer. Visitámos os ateliers uns dos outros, chegámos a ir a Sintra onde o Zé Pedro Croft estava a fazer aquelas esculturas e já estava bastante avançado, já não me lembro se chegaram a ir ao meu atelier ou se lhes mostrei fotografias das peças, as coisas da Ana Léon só vieram de Paris pouco tempo antes da exposição e portanto nós não sabíamos exactamente o que eram. Íamos falando ao telefone, eu não conhecia a Ana Léon, era o Zé Pedro e o Pedro Calapez que estavam mais próximos dela e que mandavam os recados da Ana Léon.

Em relação à exposição que supostamente se anunciou como inauguradora desta nova conjuntura sócio-cultural que se pretendia contemporânea – que foi o “Depois do Modernismo” – e com a distancia que temos agora, verificamos ou podemos afirmar que a exposição “Arquipélago” acabou por ser uma exposição muitíssimo mais marcante (enquanto exposição) desse momento de abertura de uma conjuntura nova do que propriamente o “Depois do Modernismo”. Na altura em que pensaram a exposição, pensaram-na também como resposta ao “Depois do Modernismo”?

R: O “Depois do Modernismo” foi em 1983, a nossa em 1985, dois anos depois. Eu, como vinha um bocadinho de fora, lembro-me de ter ficado com a impressão de que o “Depois do Modernismo” eram ainda muito as mesmas pessoas, que vinham de trás, da “Alternativa Zero”. Para mim, era muito uma espécie de reciclagem das pessoas que eram conceptuais uns anos antes e que tinham passado a ser pós-modernas uns anos depois. Foi a impressão com que fiquei. E era muito misturado, havia pessoas que aliás desapareceram entretanto, que nunca mais fizeram nada. E depois a coisa da Arquitectura e da Moda ... tudo aquilo era um ambiente que a mim pessoalmente não me interessava muito. Toda aquela confusão.

Não me lembro exactamente se isso foi discutido. Eu acho que foi discutido mais em termos de imagem: vamos fazer uma coisa com pouca gente, concentrada, em que as coisas se identifiquem melhor, sem ser um salão cheio de coisas em que as pessoas andassem para lá perdidas no meio de uma data de coisinhas. Vamos fazer peças de grande escala que conseguissem lidar com aquele espaço do salão. Foi basicamente isso, em termos de estratégia de grupo. Depois haveria as estratégias individuais de cada um (e eu não sei falar pelos outros) mas por mim não tinha assim grandes coisas na cabeça em termos estratégicos.

Em relação ainda à montagem e às suas peças em particular, elas foram concebidas e produzidas especificamente para a exposição mas vinham já numa continuidade de coisas em que estivesse a trabalhar ou aquele momento também foi para si um momento de abertura para outros caminhos?

R: Foi um bocadinho as duas coisas, quer dizer, permitiu-me fazer coisas maiores do que eu tinha feito antes. Em Lisboa, tinha feito só uma primeira exposição de escultura na Diferença, e o espaço da Diferença era um espaço pequenino – duas salas com uma escala domestica e as peças para o “Arquipélago” vieram na continuidade desse trabalho. A exposição na Diferença foi em 1984 e eu continuei a produzir coisas dentro da mesma linguagem, com algumas pequenas alterações e com a introdução de materiais que não tinha ainda utilizado (o gesso, por exemplo) mas basicamente a coisa fluiu naturalmente de um espaço para o outro mas desta vez com outra escala.

Em relação ao nome, à pouco quando falava da montagem e da estratégia de imagem da exposição que se pretendia concentrada com um pequeno grupo de artistas ... o próprio título da exposição (que acaba por dar nome ao grupo) revela também isso mesmo, não é?

R: Sim. Foi muito discutido. Falámos horas e horas até chegar a um nome. E chegámos ao “Arquipélago” que eu considero um óptimo título porque é uma imagem forte e muito reveladora dessa estratégia de pessoas individuais que partilham uma proximidade que é apenas conjuntural. Naquele momento havia uma espécie de reunião de forças de atracção que trouxeram aquelas partículas para ali mas que depois naturalmente cada uma seguiria o seu percurso. Aliás, nunca se chegou a falar numa segunda exposição. Nunca houve a ideia de continuarmos a expor todos outra vez em grupo, ou de fazer um “Arquipélago 2”. Havia a hipótese da ida da exposição ao Porto mas nunca se concretizou. A ideia era um bocadinho ocupar os dois espaços institucionais de referência em Lisboa e no Porto, que tinham uma imagem um bocado desgastada, associados a pessoas de gerações anteriores, com uma programação conservadora. A ideia era fazer nesses dois espaços uma coisa um bocado diferente.

Isso que acaba de dizer é interessante, essa relação por oposição ao que se passava anteriormente. Os artistas dos anos 80, vocês, foram muitas vezes criticados de perseguirem valores individualistas, darem muito pouca atenção às questões do social. Acha que isso é uma inevitabilidade própria da condição de se ser artista ou havia de facto uma intenção de romper com as práticas anteriores e marcar uma posição, nesse sentido?

R: Não, não era intencional. Deu-se o caso, por razões históricas a nível global e particularmente em Portugal porque vínhamos daquele período pós-revolucionário (em que a coisa da política e do social teve muito, muito peso, e portanto a certa altura já ninguém podia mais com aquela conversa) de haver uma certa libertação do lado mais lúdico, mais mundano e social (não no sentido político mas no sentido de encontro e partilha dos momentos lúdicos). Passava agora tudo muito mais pelos encontros, pela presença das pessoas nos bares e nessa partilha da vida nocturna. Portanto, havia, de facto, um lado bastante gregário, não era nada uma coisa de cada um estar no seu buraquinho a fazer as suas coisas. Nós víamo-nos todas as noites no Frágil, estávamos sempre juntos em grupos muito alargados (que incluíam pessoas da música, da dança, do teatro, da moda), pessoas de várias áreas que se encontravam muito por ali no Bairro Alto.

Mas isso porque vos permitia alimentar uma certa ideia de cosmopolitismo?

R: Sim, sim. Os Homeoestéticos até inventaram uma frase engraçada: “Um parolo em Nova Iorque” e portanto nós sentíamo-nos um bocadinho uns parolos em Nova Iorque ou melhor, sentíamos que estávamos a tentar fazer uma Nova Iorquezinha aqui em Lisboa. Mas era uma coisa muito divertida e eram uns dias muito animados. Havia sempre muita coisa a acontecer e era tudo muito activo, mas acho que ninguém pensou nisto de uma forma consciente. Acho que era muito mais consciente, depois, a reacção dos artistas dos anos 90 contra os artistas dos anos 80. O que não quer dizer que não houvesse pessoas nos anos 80 que tivessem uma atitude política no sentido de uma intenção de tomada do poder e de ocupação de cargos e pelouros importantes mas era uma minoria. E depois, os artistas dos anos 90 apareceram muito com esse plano de reivindicação e de resgate do espaço que tinha sido ocupado pelos dos anos 80.

Já falámos um bocadinho sobre isto mas eu queria só voltar a pegar, em relação às obras de cada um dos artistas na exposição, considera que havia pontos de contacto entre alguns dos trabalhos dos vários artistas?

R: Sim, eu acho que sim. Acho que não é difícil estabelecer contacto entre as coisas do Pedro Calapez e as minhas coisas, entre as coisas do Zé Pedro Croft e as minhas coisas, embora já seja mais difícil com a Rosa Carvalho ou com a Ana Léon. Mas mesmo as coisas do Pedro Cabrita Reis podiam ter cruzamento com as do Pedro Calapez e eventualmente com as do Zé Pedro Croft. Comigo talvez não tanto. Mas acho que, de facto, há uma série de pontos em que nos tocamos de maneira diferente e acho que não são coisas completamente díspares. Acho que se percebe que há ali uma familiaridade qualquer.

Que tipo de ecos é que foram surgindo na imprensa, para além da cobertura feita pelo Alexandre Melo e pelo João Pinharanda que acompanhavam muito de perto e que portanto também ajudaram a promover esta dinâmica e a promover a própria exposição?

R: Grande parte da cobertura foi feita por eles e não me lembro de mais nada assim particularmente notável. Lembro-me que a inauguração teve muita gente, teve muito sucesso e que depois a exposição foi sendo visitada amiúde. Lembro-me que tínhamos um patrocínio de uma firma de Vinho do Porto, lembro-me que serviram Vinho do Porto na inauguração e que depois todos os dias havia, às cinco da tarde, um Porto que era servido a quem fosse lá visitar a exposição. Nós às vezes encontrávamo-nos lá para beber um Vinho do Porto e ver como é que estavam a correr as coisas com a exposição e havia sempre uma pessoa ou outra. E lembro-me que algumas pessoas combinaram visitas acompanhadas, por exemplo o Julião Sarmento, que levou lá o Juan Muñoz e a Margarida Veiga e mais algumas pessoas da SEC, ou seja, uma série de pessoas que eu na altura não conhecia e que quiseram falar connosco. Houve, de facto, uma atenção de pessoas de outras gerações e de pessoas ligadas às instituições.

Para além disso, a partir daí houve contactos com galerias, o José Pedro Croft começou a trabalhar com a Valentim de Carvalho, eu não logo, mas algum tempo depois também comecei a trabalhar com a Valentim de Carvalho. Não me lembro se o Cabrita já trabalhava com os Cómicos ou se foi a partir dessa altura também. Portanto, houve assim uma certa movimentação à volta da exposição e que surgiu por causa da visibilidade que teve a exposição.