ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS - José Pedro Croft

José Pedro Croft, artista
(entrevista realizada em Maio 2010)

O José Pedro Croft fez a sua formação nas Belas Artes de Lisboa?

R: Sim.

Chegou a concluir o curso?

R: Não.

Foi, portanto, colega dos restantes artistas do grupo, à excepção do Rui Sanches.

R: Fui. Coincidimos na Escola na mesma altura embora estivessemos uns nuns anos e outros noutros, mas conhecíamo-nos todos.

E tinham nessa altura já afinidades? Amizades?

R: Foi por aí que tudo começou. Nós conhecemo-nos, tivemos alguma ligação à Associação de Estudantes (às primeiras formações das Associações de Estudantes) e isso passa-se tudo em 1976 / 1977. A partir daí começámos a formar um grupo e vamos acompanhando o trabalho uns dos outros. Estávamos sempre em casa uns dos outros, mais ou menos sempre em contacto e tornou-se uma amizade muito forte, embora cada um de nós com personalidades muito individualizadas.

E a partir daí o que é que vos levou a formar este grupo, ou melhor a formalizar a vossa partilha de actividades através de uma grupo?

R. Um grupo como tal nunca existiu, nem havia uma ideia de fazermos um grupo e dar-mos-lhe um nome. Este nome (“Arquipélago”) é o nome de uma exposição.

Começa a ser o nome pelo qual o grupo é conhecido a partir da exposição?

R: Sim. Começa a ser o nome pelo qual ficamos conhecidos mas, curiosamente, nunca mais fizemos nenhuma exposição em conjunto e não nos identificávamos como fazendo parte de um grupo chamado “Arquipélago”. Fazia sentido a exposição chamar-se “Arquipélago”, mas não havia o conceito de grupo no sentido de sentirmos qualquer obrigação em expôr colectivamente, nem antes, nem a seguir, de tal maneira que isso nunca mais aconteceu com o colectivo dos 6 elementos. Participámos em algumas exposições colectivas mas não os 6 elementos e muito menos com esse sentido.

Quando olhamos para a História da Arte e para aquilo que são os grupos artísticos (sobretudo os que povoam a primeira metade do século XX), vemos que há uma partilha de um programa estético e de um discurso, muitas vezes há até manifestos mas, de facto, nestes grupos dos anos 80 – no vosso ou noutros vossos contemporâneos – não há isso. Não há um programa estético pré-definido, não há nenhum tipo de intenção assumidamente revolucionária ou panfletária, nesse sentido, aliás pelo contrario até há uma decisão em deixar de lado essas questões e deixar que o trabalho acabe por se manifestar por si. Faziam questão que fosse assim ou não sentiam essa necessidade?

R: Não. Não fazíamos questão. A coisa era toda muito mais displicente e menos organizada do ponto de vista conceptual. Talvez possa ajudá-la a situar-se da seguinte maneira: Nós somos a primeira geração pós-25 de Abril, ou seja, todos nós entrámos para as Belas Artes em 1975 / 1976 / 1977 e estamos portanto numa situação em que a nossa formação já se faz durante esse período. Período em que houve grandes alterações na Escola e na sociedade portuguesa. Quando estamos nesse período não há nenhuma instituição ligada à Arte Contemporânea e que, de alguma maneira, pudesse dar um enquadramento ou um suporte. Não há Fundação Luso-Americana, não há Centro de Arte Moderna, não há Fundação de Serralves, não há Centro Cultural de Belém, não há Fundação Vieira da Silva, não há Fundação EDP, etc, etc. Portanto nós vamos buscando referências e buscando pessoas que podem connosco ir ajudando a descobrir. Há uma união que é feita porque temos interesses comuns. E há uma partilha de interesses.

E esses interesses tinham a ver com?

R: Tinham a ver com uma opção muito individual de cada um de estar no mundo criativo ligado a uma coisa que se chama Pintura, Escultura, expressão que tinha a ver com coisas de representação do mundo ou de criação do mundo num sítio em que não há contexto. Nós não nos identificávamos com a crítica de Arte instituída, e que era também o que dava aval há produção artística, porque já ligávamos isso a outra geração (mesmo que houvesse só uma diferença de cinco ou seis anos isso já correspondia a outra geração). É, portanto, deste meio meio órfão, vivido com uma enorme alegria que surgem naturalmente encontros, mais do que a formação de um corpo a que se possa chamar grupo.

A propósito da crítica de que falava agora, as duas figuras que aparecem mais ligadas a vocês e também talvez até por coincidências de interesses e de afinidades, são o Alexandre Melo e o João Pinharanda que acabam também por construir convosco esse território que não existia e do qual vocês queriam fazer parte ou queriam que existisse em Portugal. O Alexandre fala do Território do Contemporâneo, em cuja construção vocês estariam amplamente empenhados.

R: Não era em construir, era em viver.

A História é muito madrasta porque arruma as coisas de uma maneira quenão corresponde à forma como elas não foram vividas.

Nós só queríamos viver intensamente e viver intensamente passava também por fazer coisas. É um espaço do qual uma pessoa que tem vinte ou vinte e dois anos quer tomar conta. Quer tomar conta da vida e isso é uma coisa quase fisiológica, não tem nada a ver com noções de território. O território era todo (era quando se ia para a praia, quando se ia dançar, quando se ia jantar, ou quando se ia beber umas cervejolas e comer umas batatas fritas). Esse era o nosso território, que ia mudando a cada hora do dia.

Vou só acrescentar mais uma coisa em relação ao João Pinharanda e ao Alexandre Melo: nós conhecemo-los porque na altura eles escreviam para o Expresso e estavam a fazer a cobertura da noite de Lisboa, e um dos vários assuntos que eles abordaram relativamente à noite de Lisboa, era quem eram os artistas que frequentavam a noite. Quem é que abanava o capacete. Quem é que ia para o Trumps e para o Frágil.

Portanto eles estavam a fazer uma espécie de cartografia da actividade mundana na noite de Lisboa.

R: Exactamente. Frágil, Cais do Sodré, Trumps e mais meia dúzia de discotecas ... e quem é que frequentava estes locais? Eu, o Pedro Calapez, o Pedro Cabrita, a Ana Léon, a Rosa Carvalho, o Rui Sanches mas também o Pedro Casqueiro, a Madalena Coelho, a Ana Vidigal. Uma série de gente. Também não havia aí uma intenção de trazer isto para o campo da produção artística, e analisar ideologicamente o que é que estávamos a fazer, ou qual era o sentido ou qual era a matriz. Era também aí uma coisa mais displicente.

Numa entrevista que eles fazem justamente em 1983 a dois grupos, um que seriam vocês e um outro ligeiramente mais novo que inclui justamente a Ana Vidigal e o Pedro Casqueiro há uma revelação de uma espécie de carácter muito afirmativo, seguro e muito auto-determinado, ao ponto de afirmarem mesmo “Nós somos os melhores”. Eu gostaria de saber se sentiam de facto isso, com os vinte e poucos anos que tinham na altura, e com a actividade toda que tinham, ou se era mais uma estratégia de afirmação mediática?

R: “Nós somos os melhores” era uma convicção que não passava por rivalidade.

Não eram portanto os melhores em relação a ...

R: Sim, exacto. Não era por oposição a. Era uma convicção de que aquilo que nós fazemos é o melhor porque é o melhor que temos para dar, e é o melhor que temos para viver, e portanto não há melhor que isto. Eram termos absolutos, não eram relativos. Não era uma coisa pequenina e pacóvia que é muito comum (e que hoje em dia há imenso) que é: Nós somos melhores do que os anteriores. Até porque havia figuras tutelares noutras gerações, e isto é muito engraçado, porque nós não queríamos nada usá-los como modelos mas eles eram tutelares.

De que forma?

R: Imagine o que é uma pessoa como a Helena Almeida que está a fazer fotografia e que usa o corpo no final dos anos 60 quando não há contexto para ela. Imagine o que é um Álvaro Lapa, que é um pintor maldito e que quer estar completamente fora e que usa a palavra pondo-a na pintura e de uma maneira absolutamente magistral. Para nós eram luzes. No meu caso, por exemplo, o Cutileiro que num meio em que havia muita estatuária em bronze ele de repente começa a trabalhar em mármore, de uma forma muito industrial e muito directa e a revelar todo um outro olhar sobre a escultura. O Ernesto de Sousa, por exemplo.

Havia uma série de figuras pelas quais nós tínhamos a maior admiração intelectual e a maior ternura e empatia.

Mas com as quais mantinham também uma ligação?

R: Não, não. Havia uma diferença de vinte e tal anos e uma pessoa quando tem vinte anos e olha para uma pessoa que tem quarenta, e que viu três ou quatro vezes na vida, não pode ter com ela nenhuma relação. Não nos frequentávamos. Isso não impedia que houvesse uma enorme admiração. Agora, claro que o território deles não era o nosso e isso também era claríssimo. Nós queríamos fazer as coisas à nossa maneira e viver o nosso tempo, justamente numa altura em que o mercado não funciona. É como se houvesse, por isso, menos um ruído no processo da criação. Nós dizermos “os melhores” nesta altura não é a mesma coisa que dizermos “os melhores” quando está tudo definido por rattings. Hoje em dia, como está tudo em cotação de mercado (no sobe e desce e nestas coisas absolutamente perversas) não tem o mesmo sentido.

A primeira exposição em que participam (não todos, uma vez que o Rui Sanches só se vos junta em 1985) é no CAPC em Coimbra, em 1982. O que é que recorda desta exposição?

R: Eu não sei exactamente como é que fomos fazer lá a exposição. Era na casa do CAPC. Quem tratou da exposição e quem a recebeu foi uma figura absolutamente maravilhosa que se chama Túlia Saldanha. E aí sim houve uma grande cumplicidade e um fazer absolutamente extraordinário. Cada um de nós estava a trabalhar em materiais diferentes e fizemos uma instalação com formas semelhantes em materiais diferentes. Eu estava a trabalhar em mármore e eram umas formas curvas (uma espécie de lombrigas) feitas em mármores diferentes. A Ana Léon fazia mais ou menos a mesma coisa com umas almofadas de espuma. O Pedro Cabrita com uns plásticos pintados à mão mas com o mesmo género de texturas das coisas da Ana Léon. O Pedro Calapez com papel e grafite. Algumas das minhas peças iam no chão outras iam na parede, por cima das portas, nas escadas.

E em 1984 voltaram a expôr lá no CAPC.

R: Dessa já não me recordo nada.

E da exposição que fizeram em 1983 na seguradora Metrópole, recorda-se?

R: Aí eram intervenções muito mais autónomas. Aí cada um continuava a trabalhar os materiais que habitualmente trabalhava mas não havia nenhuma forma de intervir no espaço que respeitasse uma correspondência entre as obras. E era engraçado porque nós nem sabíamos bem o que é que os outros iam apresentar até porque no caso de alguns de nós, suponho que as peças tenham sido acabadas vinte e quatro horas antes. E até suponho que depois de já estarem penduradas na parede ainda eram ligeiramente alteradas.

E concretamente agora em relação à exposição “Arquipélago”, que factores é que presidiram à decisão de fazerem esta exposição na SNBA, incluindo já o Rui Sanches?

R: O Rui Sanches na altura estava a estudar em Yale e nós conhecemo-lo nessa altura e, no fundo, era a necessidade de termos pontos de contacto e de estarmos a trabalhar de uma forma muito isolada e portanto podermos com ele enriquecer o nosso trabalho. E dávamo-nos realmente todos muito bem. Estávamos muitas vezes em casa uns dos outros e íamos vendo o que é que cada um fazia. Frequentávamo-nos bastante, não só indo jantar fora ou ir a casa uns dos outros, mas também de ir acompanhando o trabalho uns dos outros e fazendo com que cada descoberta fosse também uma coisa de partilha.

Já não me lembro como é que surgiu a possibilidade de expormos na SNBA. Também não combinámos muito o que é que cada um ia fazer. Cada um apareceu com aquilo que lhe apeteceu. A opção foi expor na sala da SNBA sem nenhuma divisória, embora os trabalhos estivessem dispostos ocupando zonas definidas – eu tinha uma zona, o Rui Sanches também, a Rosa Carvalho também tinha uma série de trabalhos de óleo sobre tela (que era um trabalho que ela estava a desenvolver recentemente) e que ocupavam uma determinada zona, o Pedro Cabrita outra, a Ana Léon e o Pedro Calapez outra. Acontecia que quando se entrava tinha-se a percepção da sala toda, não havia nenhuma divisória.

Isso só por si era já também uma atitude bastante ambiciosa, porque até aí as exposições colectivas na SNBA tinham normalmente sempre aquele display com as divisórias.

R: Pois ... e as colectivas da Sociedade eram basicamente concursos. Havia um género de salões. Tanto quanto me recordo as pessoas concorriam, havia um conjunto de peças que eram seleccionadas e apareciam numa exposição.

Portanto a vossa intenção de usar o espaço na sua amplitude máxima também vos criava alguns desafios de escala ... tiveram também que tomar algumas decisões, a esse nível, em relação às obras que iam apresentar.

R: Sim, mas era tudo muito intuitivo. Era tudo muito como se fosse um programa automático. Não tomávamos a coisa como uma grande decisão, nem como sendo um desafio. Era mais o termos a possibilidade de usar este espaço, vamos usá-lo e usámo-lo.

Não houve portanto nenhuma premeditação em poder pegar naquela oportunidade e poder conscientemente transformá-lo num momento decisivo nos vossos percursos, no contexto.

R: Não.

À partida não. Isso poderia vir a ser uma consequência mas vocês não tinham à partida essa premissa. Ou seja, não tinham a percepção de que aquilo poderia ser um momento decisivo?

R: Sabíamos com certeza que era um momento decisivo. Sabíamos que a sala da SNBA era um espaço importante e luxuoso. Continua a ser, ainda hoje em dia. Acho que foi a primeira vez que o vi completamente vazio e, de facto, era imponente. Era um espaço fantástico que podíamos usar com toda a liberdade. E, nesse sentido, cada um de nós fez o melhor, porque também sabíamos que estávamos a ter apoio do outro lado. E tivemos muitos meses para preparar a exposição.

Isso permitiu-vos ter também um catálogo.

R: Exactamente. Foi uma exposição toda preparada com muito cuidado, com fund raising e patrocínios e tudo.

Dois anos antes, em 1983, no mesmo espaço da SNBA aconteceu o “Depois do Modernismo”, onde nenhum de vocês (à excepção do Pedro Calapez) esteve presente. O “Depois do Modernismo” assumia-se, esse sim de uma forma programática, como o momento de inauguração de uma nova atitude. Como é que viu a coisa, à época. Que ecos registou do acontecimento? Estiveram envolvidos enquanto espectadores? Interessaram-vos os debates à volta das questões do Pós-modernismo? O facto do “Depois do Modernismo” não ser só uma exposição mas um evento que congregava uma série de iniciativas ligadas à Moda, à Arquitectura ...

R: Eu acho que o “Depois do Modernismo” foi uma exposição importante, muito importante para Portugal e para Lisboa particularmente. De alguma maneira tornou explícito o espírito do tempo. E eu lembro-me de ter havido umas conferências, na Gulbenkian, com o Bonito Oliva, mais ou menos na mesma altura, sobre o Pós-modernismo e a definição de Pós-modernismo. De qualquer maneira, era só a explicitação de uma coisa que já era sentida e vivida: depois da Arte Conceptual que tinha marcado o território de uma maneira muito forte, depois do Maio de 68 e de tudo o que era o movimento hippie e de tudo o que era a partilha social do corpo através das performances e da importância que isso teve, havia uma necessidade de continuar, recuperando de alguma forma a Pintura e a Escultura (recuperando corpos que não eram os corpos dos artistas mas criando um mediador que é um objecto que funciona como um intermediário) sem perder a memória dessa partilha social do corpo. Houve, portanto, uma necessidade de, depois dessas experiências todas tão radicais que marcaram de uma maneira tão profunda e tão forte e que criaram rupturas e romperam e abriram campos e criaram contaminações entre diferentes áreas – do cinema, ao bailado, à poesia, ao teatro – e que ao criarem objectos tão perecíveis, tão frágeis, tão efémeros, ser possível continuar uma coisa de milhares de anos recuperando e integrando essa tradição sem perder esse abrir de campo recente. Como é que se segue para a frente, sem repetir? Esse gesto, de repente, é como o urinol do Duchamp que faz um marco e uma ruptura mas que, se for repetido, deixa de ser instaurador para passar a ser académico. E essa era a maneira como nós, sem termos grande consciência da História, tentávamos encontrar o nosso território e o nosso espaço, sabendo que tínhamos para trás isto tudo.

Sabendo isso tudo e tendo a vossa prática diária no decorrer do vosso trabalho, viram, em 1985 com a exposição na SNBA (exactamente no mesmo espaço onde tinha decorrido o “Depois do Modernismo”), uma oportunidade para, não direi, constituir um statement mas um momento de oportunidade de afirmação em relação ao que tinha sido o “Depois do Modernismo”?

R: Não. Não. Até porque estamos a falar de uma coisa que aconteceu passado dois anos. Dois anos são uma década. Para quem tem vinte anos é uma década. E era uma coisa mais séria que tem a ver com aquilo de que eu lhe falava à bocado sobre dizermos que somos os melhores. Ser o melhor não é por referência a outra coisa que se considera menor.

Como é que tudo aquilo que eu lhe estou a dizer depois se enquadra no meu trabalho? Aquilo que eu fiz foram uma série de cinco colunas que na realidade é uma peça única, que eram modeladas e trabalhadas (portanto tinham a coisa toda da escultura) e cada uma das figuras tinha uma figura inscrita e modelada que ia diminuindo de escala da primeira para a última. Reforçava a ideia de perspectiva trabalhando cada uma delas com marcações de espaço em que uma coluna só por si ou uma figura só por si não tinha leitura. A primeira tinha que ser lida em relação com a segunda, depois com a terceira, com a quarta e com a quinta. Havia, portanto, a ideia de um percurso, de relações de espaço, de múltiplas relações que estão a acontecer não só em cada um dos trabalhos modelados mas nos cruzamentos entre as modelações. Era, portanto, problematizar através do meu trabalho, aquilo que eu via e sentia nas outras coisas todas.

Esta decisão de partir para a montagem da exposição sem paredes permitindo o diálogo entre as várias obras dos vários artistas, permitindo a circulação do espectador no espaço sem condicionar um percurso pré-determinado era uma coisa que vocês tinham obviamente como pré-determinada?

R: Era como se fosse uma questão de bom senso. Não tinha grandes complicações. Grande parte destas decisões que foram sendo tomadas não são muito conceptualizadas. É mais uma questão de se ter uma sensibilidade e usá-la como se fosse um programa automático. Senão, era uma grande dor de cabeça e acabava por ser um boicote a um projecto destes. Se as coisas forem muito rígidas, muito pensadas e muito conceptualizadas e se se for pensar qual é o lugar na história e como é que vai ser daqui a dez anos e daqui a vinte ou a trinta anos é uma grande perca de tempo.

Percebo isso perfeitamente, ou acho que percebo, mas é inevitável ter-se essa consciência também, não é? É inevitável, quando se está a querer ser igual a si próprio (que é ser-se o melhor), pensar-se que inevitavelmente se vai deixar ali uma marca e a maneira como essa marca vai ser lida pelos nossos contemporâneos e pelos que vêm a seguir também é uma coisa que nos é consciente.

R: Não. Não havia essa consciência ... havia uma sensação de um enorme vazio e portanto quando se ocupa um espaço de vazio já está, está ocupado. Não tivemos que lutar. Só tivemos que lutar contra um vazio. Quando afirmamos, de repente já tomámos conta. Depois havia o enorme afecto uns pelos outros e o enorme respeito pelo trabalho uns dos outros. Portanto, tudo o que seja o outro ocupar espaço, para nós era normal. Todo o que ele ocupasse podia até ser o dobro. Era como se fossemos grandes latifundiários, realmente não estávamos ali a discutir a assoalhada. Se ele brilhava, eu já estava a brilhar com ele. Nesse sentido os tempos mudaram muito.

É muito curioso isso que está a dizer porque sobretudo durante os anos 90, quando se pensava e falava sobre os anos 80 era sempre com uma atitude muito crítica dizendo que os valores que pautavam os artistas dos anos 80 eram, sobretudo, valores individualistas, muito focados na persecução das suas carreiras individuais.

R: Eu acho que é um jogo de espelhos dos anos 90. Eles estão a ver-se ao espelho, mais a eles do que a nós.

Mas é curioso porque a década de 80 acaba por ser, no nosso passado recente, a década em que mais exposições colectivas de grupo acontecem.

R: Coincidente com um individualismo que não tem a ver com ego mas tem a ver com self. Nós podemos estar em grupo sem perdermos a identidade. Onde é que a Madalena Coelho ou a Ana Vidigal se confundem com o Pedro Casqueiro? Não se confundem. Cada um tem uma individualidade extremamente forte e poderosa e podem perfeitamente conviver uns com os outros porque são todos fortes e poderosos. A alguém frágil é que lhe falta espaço (e tem que derrubar o outro porque o outro lhe faz sombra). É verdade que vivíamos uma enorme sofreguidão de individualismo, mas tínhamos ao mesmo tempo uma enorme capacidade de partilha e de generosidade. Não há nenhuma contradição nisto, desde que não esteja a funcionar o ego mas o self.

Em relação ao catálogo, ele não documenta propriamente a exposição, talvez porque tenha sido produzido antes para poder estar pronto na inauguração. As obras que aparecem reproduzidas não são exactamente as que estavam na exposição e também não há uma lista de obras provavelmente porque vocês não tinham ainda uma decisão concreta.

R: Isso é o lado simpático. É a coisa displicente de quem não tinha muita preocupação com a História, porque se tivéssemos muita preocupação com a História tínhamos documentado a exposição, tínhamos feito um evento qualquer para lançamento do catálogo.

Mas de qualquer forma vocês tinham uma preocupação em ser profissionais, em que a exposição fosse bem divulgada, bem organizada?

R: Sim claro. E éramos muito profissionais. Nós tínhamos um enorme prazer e um enorme gozo, mas ao mesmo tempo éramos muito profissionais.

E de que forma é que a exposição foi recebida pelo público em geral? Pela crítica houve na altura um acompanhamento relativamente grande feito sobretudo pelo Alexandre Melo e pelo João Pinharanda.

R: Todas as exposições que nós tínhamos tido até aí e que culminaram com a exposição “Arquipélago” eram uma festa. Centenas de pessoas (mas muitas centenas) na inauguração. Havia, como hoje em dia não há. Na exposição anterior à da SNBA, a que foi na seguradora Metrópole estiveram qualquer coisa como seiscentas pessoas. Eram realmente acontecimentos. Vivíamos momentos de euforia.

As inaugurações acabavam por ser um prolongamento desses encontros de que falávamos à pouco. Dos momentos de partilha da vida mundana.

R: Pois era. E não aconteciam muitas coisas em Lisboa nessa altura. Havia, por isso, uma enorme vontade de ver e de fazer coisas e um enorme entusiasmo.

O título da exposição é também muito exemplificativo daquilo que vos unia. Pode falar um bocadinho sobre isso? Como é que chegaram a este título?

R: Era justamente esse conceito de um enorme individualismo, mas um individualismo com pertença.

Havia um chão comum, uma ligação ...

R: Era. Havia um território comum que era um mar que nos ligava uns aos outros e que era o mesmo mar que nos ligava ao mundo inteiro.

Tem mais alguma coisa de que gostaria de falar e sobre a qual eu não lhe tenha perguntado?

R: Não. Eu fiquei muito surpreendido quando me telefonou. De repente fiz umas contas que nunca tinha feito. Passaram vinte e cinco anos e, é curioso porque, foi uma exposição que foi muito importante no sentido em que foi uma primeira grande afirmação e, ao mesmo tempo, a última. Depois cada um de nós seguiu os seus percursos individuais.

Este momento foi portanto marcante a todos os níveis, mas no seu percurso em particular acha que era inevitável ter feito parte desta estrutura gregária do grupo? O seu percurso poderia ter sido outro?

R: Não, não era inevitável. O meu percurso podia ter sido pela Arquitectura, podia ter sido pela Pintura, acabou por ser pela Escultura. Esta experiência gregária foi muito boa e continua a ser muito boa, porque eu continuo a precisar de pessoas e o meu trabalho faz-se através daquilo que recebo dos outros. Naquele momento eram aquelas pessoas que me estavam a dar e que me alimentavam, depois passaram a ser outras.

E o que é que se alterou no seu percurso a partir desse momento? Surgiram convites?

R: A exposição foi em 1985 e comecei a trabalhar com a Galeria Valentim de Carvalho. Depois em Fevereiro do ano seguinte fiz a minha primeira exposição em Madrid, na ARCO, e aí curiosamente houve uma alteração. Esta escultura era uma escultura de modelação, de colunas que faziam relações entre elas e eram vários elementos que se ligavam uns com os outros. A partir daí comecei a trabalhar a partir de desperdícios de blocos de mármore e dois meses depois já estava a aproveitar só lixo e restos de material.

Acaba por ser então um momento em que há, de facto, uma inflexão no seu trabalho.

R: Nesta altura estas inflexões estavam sempre a acontecer. Nesta altura da minha vida, dois ou três meses eram como se fossem cinco anos.

A exposição foi, por isso, então uma oportunidade para testar uma série de coisas que deram lugar a outras.

R: Sim. E isso é a vida. Todas as oportunidades abrem portas para outras coisas. Não foi esta exposição especificamente, foram todas. Por isso é que lido mal com a História porque a História tende a arrumar as coisas e a dar-lhes um sentido quando esse sentido é completamente ao lado. Eu acho que qualquer um de nós tinha um sentido de vida que depois veio a ser confirmado e que é o sítio em que cada um de nós está. Aquela foi assim como uma sala de aeroporto onde nós convivemos e depois cada um foi apanhando o avião para o seu destino, para a sua casa. Num determinado momento a casa foi aquela, uma casa comum durante um certo tempo.

Muito interessante essa metáfora. Assenta bem na imagem do colectivo.

R: Claro. Estamos todos na mesma sala do aeroporto mas cada um sabe que o outro vai para Istambul e o outro para Nova Iorque. Cada um tem essa consciência da individualidade, no sentido de poder escolher um qualquer caminho naquele momento.