Eu gostava primeiro de falar consigo sobre uma entrevista que o Alexandre e o João Pinharanda fizeram, no Expresso, em 1983, a um grupo, aliás a dois grupos de jovens artistas. Na altura no primeiro grupo estaria o Pedro Cabrita Reis, o Rui Sanches, o José Pedro Croft e o Pedro Calapez e no segundo, entre outros, o Pedro Casqueiro e a Ana Vidigal (ligeiramente mais novos). Eram todos ainda bastante jovens e já nessa altura diziam que pretendiam instaurar uma atitude nova, eles próprios tinham já uma atitude nova em relação às instituições, em relação ao mercado, em relação aos outros artistas das gerações anteriores. Estando vocês, por um lado, tão próximos destes artistas, compreendo que lhes quisessem dar voz ... mas o que é que vos levou, enquanto responsáveis por um espaço dedicado à Arte e à Cultura, naquela publicação na altura, o que é que vos fez dar voz a estes artistas tão jovens naquele momento?
R: A dinâmica que nos levaria a conhecer esses artistas e depois a fazer uma série de trabalhos jornalísticos/ críticos com eles, e que depois se prologaria por muitos anos (aliás até hoje) resulta daquilo que eu penso que possa ser a explicação mais essencial e mais geral. Resulta de uma grande necessidade, que era sentida nessa altura por todas as pessoas mais ou menos da nossa idade, de viver, construir, fazer parte daquilo que se está a fazer. O que é natural nesse período da vida das pessoas. No fundo faz-se a conjuntura em que se quer viver, ou contribui-se para poder viver numa conjuntura que seja aquela que nós queremos. Eu penso que havia sobretudo a necessidade de sentir que fazíamos parte de uma nova conjuntura e de uma nova dinâmica cultural, e portanto a necessidade de a construir ou de contribuir para a construir, por demarcação, ou por distância, ou por afastamento quer às conjunturas pré-revolucionárias (portanto de todos os debates que vinham já dos anos 50, dos anos 60, com um conjunto de instituições e de protagonistas que ficaram muito imobilizados nos debates dessa época, com escolas muito imobilistas também – isto independentemente de haver sempre excepções e pessoas que se destacavam disso – com uma quase inexistência de instituições dedicadas à Arte Contemporânea, ou diria mesmo nenhuma na altura – o Centro de Arte Moderna terá aberto nessa altura mas mesmo o CAM era nessa fase bastante prudente na sua relação com a Arte Contemporânea). Era portanto uma situação em que não havia nada que correspondesse à tal conjuntura que nós desejávamos e à qual chamei nos meus textos: uma conjuntura contemporânea.
Pretendíamos portanto mostrar que esta geração e a nova dinâmica em que estávamos empenhados e a nova conjuntura que achávamos que lhe estaria associada e que nós próprios contribuiríamos para criar, não tinha nada a ver com essas velhas coisas dos anos 50 e 60 e também não tinha a ver com a conjuntura imediatamente anterior pós-revolucionária, porque a conjuntura pós-revolucionária, independentemente de ter comportado (e nós sabemos isso até melhor agora do que na altura) uma série de experiências artísticas que foram muito valiosas e enriquecedoras (e que se calhar algumas delas nós nem tínhamos acompanhado muito de perto), era de tal modo hiper-politizado, que todas as coisas que eventualmente tenham acontecido e que aconteceram, acabavam por (em termos de experiência social e cultural) serem vividas apenas sob a forma de lutas politicas, e político-partidárias, e de uma exaustão de lutas ideológicas (também elas muito anacrónicas, retrógradas e quase absurdas quando as analisamos hoje).
Portanto havia uma necessidade de estar e de fazer parte e de contribuir para que existisse uma conjuntura cultural – que nós chamávamos contemporânea, cosmopolita, etc – e que estivesse claramente depois quer de todas aquelas polémicas e imobilismos que nós considerávamos que já vinham dos anos 50 e 60, quer também algo que já estivesse depois de experiências da segunda metade da década de 70 e que, independentemente da importância que tiveram (aliás a importância delas ainda hoje se nota duma maneira muito forte na História da Arte Portuguesa) para nós, na nossa própria experiência social, na idade em que nós vivemos tudo aquilo, tudo isso estava completamente afogado numa exaustão de lutas político-ideológicas que também elas já nos pareciam absolutamente anacrónicas (e eram, como aliás se veio a perceber rapidamente).
Na sequência desse desejo, nós (quer eu quer o João, embora de maneiras diferentes) partilhávamos também um desejo de escrever a partir de uma cumplicidade real e efectivamente assumida com aquilo que se estava a passar e com as pessoas que estavam a fazer coisas. Eram textos mais jornalísticos, escritos completamente de dentro para fora. Nós identificávamo-nos, e até tornávamos isso explícito, gostávamos de trabalhar em conjunto com os artistas e fazíamos parte daquela dinâmica (embora, no fundo, essas cumplicidades entre os artistas e as pessoas que escrevem sobre arte sempre tenham existido, mas no nosso caso isso era assumido explicitamente e essa assumpção fazia parte da própria dinâmica e da especificidade da maneira de escrever).
Quando comecei a escrever umas primeiras hipóteses de peças jornalísticas, ou quando começámos a conseguir conquistar espaço para escrever peças mais jornalísticas ou mais críticas, sintonizadas com essas novas dinâmicas, uma das nossas principais metodologias de trabalho era identificar grupos de pessoas com os quais nós achávamos que tínhamos cumplicidades suficientemente fortes em relação a estas motivações e aspirações culturais e artísticas para, conversando com eles e discutindo com eles, escrevendo sobre aquilo que eles estavam a fazer, podermos começar a configurar a tal nova conjuntura artística e cultural em emergência.
Eu na altura, antes ainda dessas entrevistas, fiz entrevistas e escrevi algumas coisas sobre a vida nocturna, a vida mundana em Lisboa: novos bares, lojas, restaurantes que estavam a aparecer – o novo Bairro Alto. Aquilo a que ironicamente na redacção do Expresso chamavam as coisas nouveau interressants que era o nome de uma coluna numa revista francesa muito em moda na altura (a Actuelle). Ironicamente diziam que eu era especialista em coisas nouveau interessants, o que até corresponde, de uma forma caricatural, a essa sofreguidão em identificar coisas com as quais nos pudéssemos relacionar por forma a promover a emergência da tal nova conjuntura a que na altura nós chamávamos contemporânea. Foi portanto na sequência desse trabalho em curso que, através de um amigo comum, conhecemos uma nova geração de artistas que estavam a acabar a escola e que estavam a fazer umas primeiras exposições de grupo, ou outras individuais, e que eram completamente diferentes dos que os tinham precedido, tinham uma dinâmica nova (eram portanto pessoas que nós deveríamos conhecer) ... começámos a partir daí com entrevistas, conversas, textos, até hoje.
Pois esta questão da dinâmica dos grupos (e de grupo) é uma coisa muito característica da altura, não é? As exposições de grupo são assim um dos ex-líbris dos anos 80 o que é estranho, porque o que se aponta normalmente a estes artistas, por oposição áquilo que lhes era anterior, é um lado justamente mais individualista que se revela num interesse que demonstram em prosseguir com as suas carreiras de uma forma mais individualizada sem tanta atenção às questões do social ou do colectivo.
R: A questão dos grupos nas Artes tem de ser sempre vista e tem de ser perspectivada com muito cuidado em termos históricos. Os grupos nos anos 80 em Portugal resultam muito mais das circunstâncias concretas da organização da apresentação dos trabalhos e da partilha do discurso sobre os trabalhos do que de efectivas afinidades estéticas, formais ou mesmo ideológicas. O que acontece é que esses grupos, que se formaram muito nos anos 80, são grupos que nalguns casos só existiram como grupo durante um período muito reduzido e, em rigor (e vendo agora com alguma distancia histórica), só se lhes pode chamar grupos porque fizeram uma série de exposições em conjunto, porque, como eram amigos, se organizavam em conjunto para fazer essas exposições (e também catálogos ou outro tipo de trabalhos, contactos, coisas em comum) Portanto, porque é que a ideia dos grupos nos anos 80 ficou tão forte? Porque uma grande parte daqueles artistas depois se tornaram muito famosos e muito rapidamente (embora quando isso aconteceu eles já não funcionassem como grupo). Mas foi sobretudo porque durante esse período de afirmação, houve um discurso crítico e jornalístico, e portanto uma percepção social e cultural, em que a apresentação deles como grupo ganhou uma grande força. Ou seja, houve na realidade uma série de factores, que são factores conjunturais, quase circunstanciais (embora reais, porque de facto eles falavam muito uns com os outros, e trabalhavam juntos, faziam planos juntos, fizeram uma série de exposições juntos e nós escrevemos sobre eles muitas vezes em conjunto). O que é um facto é que muito rapidamente se percebe (eu aliás nesses primeiros textos já dizia) que eles não têm propriamente afinidades estéticas, ou formais, ou ideológicas a não ser a tal questão da atitude (que também era sempre definida mais em termos de relação com a conjuntura social e cultural nacional e internacional).
Quer dizer, é possível (agora vendo a coisa à distancia), dizer que em termos da prática da escultura podíamos encontrar alguns pontos de contacto entre o Cabrita, o Croft, o Sanches e mesmo isso não é determinante, nem é porventura o mais interessante que se pode dizer a propósito do trabalho deles.
Em relação ao mercado na altura, e tendo em conta que estes artistas também se encontravam no início de carreira, acaba por ser muito surpreendente a forma como o mercado reage a estas novas propostas ou a esta nova atitude.
R: Bom, com a Revolução de 1974 o mercado da Arte praticamente acabou. Houve um boom de mercado no princípio dos anos 70 (que estava associado a factores económicos e a um período muito próspero de livre especulação bolsista e de grandes investimentos finaceiros) que depois, com a grande crise económica internacional de 73 tenderia a esboroar-se. Mas em Portugal esse factor foi ainda sobre-determinado pela Revolução Democrática e toda a agitação que se lhe seguiu e portanto não se estava a ver Bancos ou grandes empresas (que foram praticamente todas nacionalizadas) a comprar obras de Arte, nem estávamos a ver ninguém interessado em abrir lojas para vender obras de Arte ou mesmo não era imaginável que os próprios artistas pudessem pensar nisso porque havia a tal sobre-determinação de tudo pelas lutas politicas e ideológicas. Mas os artistas continuaram a trabalhar e, no início dos anos 80, com uma certa estabilização da situação económica no país (depois dos programas impostos pelo FMI no final da década de 70) começa a haver condições para que resurja um pequeno mercado de Arte embrionário em Portugal. Nós, aliás, tivemos sempre a posição de considerar que as galerias e os galeristas e uma dimensão económica do meio artístico, também faziam parte da dinamização da conjuntura cultural, ou seja, alguns galeristas também eram considerados por mim como fazendo parte dessa dinâmica e nessa medida podemos considerar que toda esta dinamização também servia para enquadrar e apoiar o trabalho de algumas galerias – basicamente os Cómicos e a Módulo. Entrevistei-os várias vezes e escrevi sobre quase todas as exposições deles durante um certo período.
Mesmo assim convém, para termos o sentido das proporções, dizer que comparada com a situação de hoje em Portugal (que não é propriamente gloriosa) a situação na altura era praticamente inexistente. Não se vendia nada, ou se se vendia era esporadicamente. Numa das primeiras exposições individuais que o Cabrita Reis fez na Diferença, no dia em que fechou a exposição ofereceu as obras todas às pessoas amigas que estavam lá (provavelmente a ajudar a desmontar a exposição). E mesmo em termos de apoios, de subsídios, de bolsas, de patrocínios, tudo isso eram raridades absolutas: eram aquelas bolsas da Gulbenkian, alguns apoios que vinham da SEC. Mas tudo isso eram coisas muito esporádicas. Nós dizemos sempre que hoje em dia o meio da Arte Contemporânea em Portugal é muito débil mas agora pelo menos já existe, temos alguns exemplos de todas as coisas e algumas delas até funcionam bem e já há uma rede de relações estabelecida entre essas coisas. Na altura, a maior parte dessas peças nem sequer existiam e as que existiam, poucas, funcionavam com muita dificuldade e quanto às relações estavam a começar a ser construídas mas tudo de uma forma muito precária.
Mesmo a questão da internacionalização (que era uma das nossas grandes apostas e obsessões, precisamente por causa da noção de cosmopolitismo e porque nos queríamos livrar daquele sentido de inferioridade nacional que já vinha desde o passado e que se prolongou ao longo de todo o século XX). Mesmo aí a questão das batalhas da internacionalização ficava por ir-se à ARCO a Madrid ou arranjar-se uma galeria ou uma exposição em Espanha. Levaram-se muitos anos para que isso deixasse de ser assim e foi uma coisa a pouco e pouco, um artista ou outro que conseguiram ir mais longe (antes de mais o Julião Sarmento e depois alguns outros, poucos, foram começando a ir mais longe). Mas quando nós vemos a situação hoje, só no que diz respeito por exemplo à relação entre Portugal e Espanha: há dezenas de artistas portugueses que fazem exposições em Espanha ou que têm relações com galerias espanholas ou que vendem em Espanha. Só comparando isso, a questão da internacionalização punha-se na altura em termos que, para mim, são quase caricatos: fazer-se reportagens extensíssimas sobre a ARCO todos os anos, de cada vez que um artista português era convidado para uma exposição de grupo no estrangeiro dava direito a uma pequena caixa. Hoje, apesar de todas as dificuldades que ainda existem, a transformação é tal que os mais novos nem acreditam.
Antes desta exposição “Arquipélago” que foi um marco neste período sobretudo porque marcava esta atitude nova, contemporânea, aconteceram duas outras exposições: em 1977 a “Alternativa Zero” e em 1983 a “Depois do Modernismo” e que tinham ambas um objectivo prospectivo (uma depois percebeu-se que era mais um encerrar de um ciclo do que o inaugurar de alguma coisa), mas sobretudo o “Depois do Modernismo” é tida como uma exposição que abre estes anos 80. No entanto, em alguns artigos que eu li, esta não é tida por vocês como a exposição marco dos anos 80, mas sim a exposição “Arquipélago”. O que é que vos levava a ter esta leitura?
R: Essas exposições são todas importantes mas por razões diferentes. A “Alternativa Zero” é uma exposição importantíssima mas de facto remete para a História que a precede, embora tenha obras fortíssimas de artistas que depois vieram a provar a sua vitalidade. Alguns deles até usam a “Alternativa Zero” para fazer uma espécie de passagem do que faziam antes para o que vieram a fazer depois. Portanto é uma exposição que é muito interessante analisar até pela própria História da exposição.
A “Depois do Modernismo” é uma exposição muito curiosa porque o acontecimento, e todo o espírito que envolveu o acontecimento desde a sua preparação, produção, estratégia de comunicação, são mais reveladores e significativos em termos artísticos e culturais do que a maior parte das obras que estavam na exposição. Aliás, eu julgo que se fossemos ver agora todas as obras que estavam na exposição acharíamos um pouco estranho (exceptuando alguns artistas e alguns nomes que já eram e continuaram a ser referências) e vendo o conjunto todo pensaríamos: “... mas isto representa aquilo de que se fala?”.
O que foi importante foi que essa exposição, até por causa do título, e também pela vitalidade intelectual, comunicacional e mundana de muitos dos vários protagonistas que lhe estiveram associados, permitiu que se falasse a série em Portugal de toda a questão do Pós-modernismo. E do que era o Pós-modernismo e da ruptura com a situação cultural e conceptual anterior. Todos esses debates que estavam a decorrer no resto do mundo no princípio dos anos 80, em Portugal polarizaram-se no “Depois do Modernismo”, que surgiu como um pretexto para se falar dessa tal mudança de atitude em relação às coisas dos anos 50 e 60 e também ao período pós-revolucionário de 70. Era um novo universo de problemas, de teorias e de conceitos à volta da noção de Pós-modernismo. Aspectos importantes como a integração da Moda no meio cultural, uma enorme valorização da Arquitectura (que depois se manteve com a continuidade do trabalho d’ os Cómicos e com o extraordinário trabalho feito por muitos arquitectos na valorização cultural e artística da Arquitectura ao longo de toda essa década), a articulação com a vida mundana, os projectos artísticos no Frágil e uma série de iniciativas e acontecimentos mundanos nos quais participavam artistas. Tudo isso, independentemente de ter mais ou menos importância em termos estritamente artísticos, tem importância em termos sociais, culturais e em termos de uma percepção mais alargada do que é uma nova conjuntura social e cultural.
Eu valorizei mais o “Arquipélago” num certo sentido. Penso que em termos de análises sociais e culturais nunca as comparei. Quando eu valorizei o “Arquipélago” e tentei sublinhar esta exposição e os artistas que nela participaram, a ideia fundamental era já nessa altura era dizer (aliás acho que isso está escrito quase textualmente) que estes artistas nunca corresponderam (excepto talvez em breves meses das suas obras de juventude) à chamada conjuntura da Transvanguarda, do Neo-expressionismo, do Regresso à Pintura, da Bad Painting, dos Novos Selvagens. Embora, por um efeito de amálgama muitas pessoas, principalmente ao longo da década de 90, tenham passado a considerar que todos estes artistas faziam parte dessa dinâmica, de facto nunca fizeram. Exceptuando talvez um pequeno núcleo de obras, trabalhos de juventude que possam ter relações com isso, o que era quase inevitável porque estavam a trabalhar nesse exacto momento (82 ou 83) mas assim que as suas obras se começaram a definir ficou claro que não era essa a família a que pertenciam.
Não fazem parte disso, eles vêm já depois disso. É preciso perceber isso porque esta minha afirmação do “Contemporâneo como Território” é uma coisa diferente, em que existem ou podem existir todas as coisas ao mesmo tempo ou muitas coisas ao mesmo tempo e isto não é Transvanguarda, nem Neo-expressionismo, isto é depois disso.
E foi nesse sentido que eu valorizei esta exposição. O objectivo era fazer justiça à especificidade destes artistas enquanto artistas que estavam a trabalhar numa conjuntura que era diferente e que era já posterior ao que entretanto se tinha sistematizado como a vulgata neo-expressionista de 80-83 ou de 78-83.
De qualquer forma, quando pensamos no grupo – o Pedro Cabrita Reis, o Pedro Calapez, o José Pedro Croft, o Rui Sanches que entra justamente em 85 e não participa nas primeiras exposições do grupo, a Ana León e a Rosa Carvalho – e tendo em conta que os percursos individuais deles se vieram a revelar depois (com maior destaque para uns e menor para outros), havia na altura, e para além das afinidades de que falámos à pouco, havia na exposição, até pelas decisões da montagem, uma nova abordagem e uma tentativa de criar novas possibilidades de diálogo entre as obras apesar de individualmente não haver critérios de familiaridade formal ou estética que as aproximasse. Gostava que falasse um bocadinho, daquilo que recorda, sobre a forma como a exposição estava montada, as obras que estavam presentes.
R: Eu não vejo fotografias da exposição há muito tempo e portanto não tenho uma memória muito viva em relação à disposição das obras no espaço. Aquilo que eu me lembro é que, em primeiro lugar havia uma noção, que aliás se manteve em muitos desses artistas, de ocupação total do espaço. Se não estou em erro a exposição não tinha divisórias, era completamente aberta, o que era uma coisa muito rara e não era a maneira habitual de fazer exposições na SNBA. Depois havia pontos de contacto relativamente fáceis de estabelecer entre, pelo menos, as obras do Cabrita, do Calapez, do Rui Sanches e do Zé Pedro Croft. A Ana Léon é um caso especial porque a Ana Léon vivia em Paris e eu conhecia muito mal o trabalho dela. A Rosa Carvalho sempre teve, e continua a ter, um trabalho absolutamente pessoal, único, original, que evidentemente funcionava perfeitamente naquele conjunto mas que não se pode considerar que tivesse relações formais muito óbvias com os outros.
Naquela altura todos os outros tinham uma preocupação (e que aliás até certo ponto continuam a ter) com as questões do espaço, com as questões da construção e mesmo com um determinado uso de materiais, fossem eles quais fossem, que reforçavam potenciais de diálogo.
Na altura, se não estou em erro, os trabalhos do Cabrita para essa exposição eram grandes portas de madeira que ele ia destruindo e reconstruindo e pintando. Era portanto um trabalho que partia de um determinado material que tem uma fisicidade própria e depois era um trabalho de destruição, construção, reconstrução, acoplagem, etc, etc.
O trabalho do Rui Sanches eram desconstruções artístico-arquitectónicas que criavam linhas de leitura no espaço, criavam equilíbrios e desequilíbrios e tensões no próprio espaço. Eram obras aliás muito boas, algumas delas eram mesmo das melhores que ele fez nesse período, que pelo tipo de tensões que criavam no espaço, só por si, já faziam a redistribuição das tensões entre as outras. As peças do Calapez na altura, se não estou em erro, também eram peças de referência arquitectónica. Eram umas pinturas com estruturas arquitectónicas e uma espécie de espaços desconstruídos. No Zé Pedro Croft, na altura, o material ainda era a pedra e também havia essa vertente arquitectónica.
Havia aliás em todos eles uma capacidade de ocupar o espaço, de marcar o espaço, de intervir no espaço, de construir e desconstruir espaços, seja na pintura com o Calapez, seja na escultura com o Zé Pedro, seja naquelas coisas que o Pedro Cabrita Reis fazia e que não sei muito bem como definir, seja até de uma forma mais analítica e sistemática no Rui Sanches. Portanto esse podia ser um ponto de contacto.
Mas o grande destaque em termos da montagem era, de facto, (e porque eles se conheciam bem e conheciam muito bem o trabalho uns dos outros) o conseguirem ocupar aquele espaço gigantesco com obras de 6 artistas completamente diferentes e aquilo funcionar muito bem.
Há uma certa tendência para a monumentalidade ...
R: É verdade. A referência à arquitectura, sob várias formas, era muito marcante neles todos ... mesmo no Cabrita, pelo simples facto de serem aquelas placas, aquela espécie de portas de madeira, estruturas de passagem.
Retirei uma citação de um texto seu, aliás muito eloquente, que diz: “A utilidade que haverá de conceder-se à compreensão dos deslocamentos que o trabalho destes artistas provoca em relação à conjuntura de viragem da década, não deve deixar esquecer que a grandeza maior do que foi e será feito, se haverá de avaliar não no acerto das contas ajustadas com o passado mas no modo como esse fazer souber acompanhar, cumular, antecipar ou transtornar o que a partir de cada dia de hoje – e desde sempre – cada um de nós, os da mesma idade da alma, tiver que fazer”.
Já falámos um bocadinho sobre isto, mas volto a perguntar-lhe de que forma é que acha que esta exposição, à luz até de tudo o que já se passou depois, se constituiu como o momento determinante nessa viragem de paradigma de que falámos à pouco?
R: O que eu penso é que essa observação é-me aliás extremamente abstracta porque a maneira como eu achava que seria possível falar daqueles artistas como grupo tinha de ser com um grande nível de abstracção. O que eu estava aí a dizer que era importante naquela exposição, desse pt de vista, é que quem ia ver a exposição não ia valorizar o facto conjuntural de aquilo ser algo que estava a estabelecer um discurso geracional qualquer em relação a coisas anteriores. Se olharmos para aquela exposição hoje não será necessário lembrarmo-nos do que fizeram os artistas dos anos 60 ou 70 para perceber aquela exposição, ou seja, de facto olhando para as obras e vendo o que lá estava, o que saltava à vista não era nenhum tipo de ajuste de contas com o que quer que fosse. Era já uma autonomização dos trabalhos, neste caso até já uma autonomização individual bastante forte embora com estes pontos de diálogo que nós sugerimos. Portanto o meu apelo (que é mais uma constatação) era basicamente que eles continuem a fazer o que querem e que eu quero, de acordo com o que nos está a acontecer ou que nós queremos que nos aconteça em cada momento. E que isso é que é importante, e não tanto criticar ou alimentar qualquer conflito geracional ou estético com qualquer coisa anterior.
Mas a leitura desse conflito é um facto inevitável. Não digo que fosse para eles um programa mas resulta da leitura da exposição e da leitura sobre a actividade do grupo, também um bocadinho isso.
R: Sim. Há uma frase, que eu já não tenho a certeza de quem a proferiu (embora possa calcular), numa destas entrevistas no Expresso em que é dito: “Preparamo-nos para declarar a inexistência do inimigo”. A questão era portanto mostrar que a afirmação deste grupo não era feita de uma forma dialéctica, era feita de uma forma inauguracional. Nós inauguramos um novo espaço, um novo “Arquipélago”, não precisamos de desenvolver uma dialéctica de ruptura, ou de revisitação, ou de combate, ou de revalorização de coisas anteriores. Nós instauramos um novo lugar, uma nova conjuntura cultural na cena artística portuguesa. Claro que, em termos práticos, vai dar no mesmo mas o facto de a forma de fazer as coisas ser esta e não a outra também é igualmente importante. É evidente que se tu instauras uma nova conjuntura cultural, de certo modo desalojas a outra. Embora este desalojar seja sempre um jogo de percepções porque, evidentemente, os artistas que já trabalhavam antes e que vinham dos anos 50, 60, 70, continuaram a trabalhar e continuam a trabalhar hoje em dia.
Durante um determinado período gerou-se de facto uma percepção da inauguração de uma nova conjuntura cultural e para reforçar essa ideia em termos de autonomia deste movimento de abertura (autonomia mesmo em relação ao que seria uma dinâmica de combate ou de ruptura em relação às gerações anteriores) era importante sublinhar esse aspecto. É como se o novo “Arquipélago” emergisse. Tinham aparecido seis novas ilhas que estão relacionadas umas com as outras mas que mantém a sua autonomia e não existiam antes. O “Arquipélago” não é contra nada, era uma coisa que não existia e que depois passou a existir.
A exposição em si é muito importante. Aqueles são trabalhos peculiares, são trabalhos muito mudos. Não são trabalhos que possam ser facilmente arrumados no meio de muitos outros trabalhos parecidos. É evidente que alguns deles têm algumas marcas do tempo, mas são trabalhos muito específicos. Não se pode dizer que houvesse em Portugal mais dez pessoas ou mais cem pessoas no mundo a fazer coisas muito parecidas com aquelas. Claro que há pontos de contacto mas há marcas de especificidade, mesmo em termos formais, em cada um dos artistas que são consideráveis.
E já tinham ali uma espécie de génese daquilo que viria a ser depois o percurso de cada um deles.
R: Completamente.