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Luís Serpa
Galerista, Programador
(conversa sobre Fernando Calhau. Outubro 2009)
Queria perguntar-lhe, em primeiro lugar, como é que conheceu o Fernando Calhau. Que me localizasse mais ou menos o momento em que o conheceu ... penso que foi na Faculdade?
R: Sim, eu conheci o Fernando Calhau na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, no curso de Pintura, ao mesmo tempo que conheci também o Julião Sarmento. Entrámos os três no mesmo ano; aliás nascemos os três no mesmo ano, em 1948. E lembro-me que o Fernando trazia já atrás de si algumas exposições individuais, o que fazia de nós uns meros noviços na matéria e ele já vinha como O ARTISTA, e não como o aprendiz de artista. Portanto, naquele primeiro ano, eu e o Julião estávamos em trânsito para Arquitectura (a mim faltava-me a cadeira de Matemática do 7º ano) e, portanto, não pude entrar nesse ano; mas Arquitectura, Pintura e Escultura tinham três cadeiras que eram comuns: Desenho de Estátua, Geometria Descritiva e História de Arte o que nos permitia aproveitar esta situação. Então, frequentei um ano em Pintura para poder depois passar para Arquitectura. Depois apareceu o Maio de '68, a crise académica de '69. Eu era bastante activo politicamente na Escola e, em Abril de '69 fui "apanhado" para o serviço militar e estive lá quatro anos o que me impediu de continuar o Curso.
Foi para o Ultramar ...
R: Fui, fui para o Ultramar. Estive um ano e meio aqui e dois anos e meio em Angola e perdi um pouco o contacto com Lisboa. Estava em Lisboa no 25 de Abril mas depois pedi uma Bolsa para ir estudar para Itália e voltei só em '82. Os anos '70 para mim têm um hiato, embora tenha sido mais ou menos activo nessa matéria. Durante os anos '70 não me relacionei muito com os artistas, embora tenha feito parte do Grupo Zero com Julião Sarmento e João Bento de Almeida. Foi uma actividade muito efémera mas temos trabalho conjunto publicado.
Sim, sim há umas serigrafias, não é?
R: Sim, há umas serigrafias que até constam do Catálogo Raisonnè do Julião.
Dei-me com o Fernando desde essa altura e, principalmente, depois de abrir a Galeria (1984) ou quando iniciei o "Depois do Modernismo" (1983) ele ser já funcionário da Secretaria de Estado da Cultura; depois foi Chefe de Divisão e estabelecemos uma relação, digamos, de Galeria e Instituição.
Claro que ele deveria fazer parte, desde logo, do grupo de artistas que a Galeria representaria. Lembro-me que não esteve na primeira escolha de artistas do "Depois do Modernismo" e que eu tentei "recuperá-lo" (o comissário da parte das Artes Visuais era o Leonel Moura) e concordámos em convidá-lo; mas ele achou por bem não ser incluído. Também porque ele não se classificava muito bem nestas ideias sobre o pós-modernismo.
E, a partir do momento em que abri a Galeria, ele foi um dos primeiros a fazer uma exposição, prosseguindo sempre a trabalharmos regularmente juntos. Lembro-me que o Fernando, contrariamente aos outros artistas, não era um artista muito disponível para se encontrar com os curators, com os galeristas, com críticos de arte que passavam por Portugal. Oscilava muito entre o low profile, pelo facto de ter um posto institucional e, por outro, por ser artista. Eu tenho pena ...
Mas acha que era mesmo essa a razão?
R: Não, não era só isso. Ele tinha de facto um low profile, tinha a sua profissão no Estado e, também, porque era tímido, achava que não devia participar muito nestes encontros em Portugal por onde passavam os opinion makers e isso pesou sobre a sua carreira internacional porque nas Feiras de Arte em que o apresentei houve muito interesse sobre o seu trabalho. Claro que existia sempre aquela relação entre o Allan Charlton e o trabalho dele, as monocromias ... dizia-se que eram um epígono do que o Charlton fazia mas eu sabia que ele tinha um trabalho muito autêntico. Seguia muito bem o trabalho dele e sabia que era autêntico.
Ele teve, então, a oportunidade de ter uma carreira internacional, porque as respostas das pessoas que viam o trabalho nas Feiras (especialmente em Tóquio ou em Madrid) eram muito positivas; mas ele não dava andamento a isso. É claro que tinha a nossa estima aqui em Portugal mas negligenciou a possibilidade de fazer essa carreira internacional. E foi pena!
Os motivos que me apontou são perfeitamente compreensíveis mas acha que era mesmo só isso?
R: Era. Era só isso, quer dizer ...
Mas acha que ele tinha, em relação ao seu trabalho, uma noção de aquilo era, de facto, importante e pertinente e tinha que ser visto para além das fronteiras de Portugal?
R: Acho que isso era a ambição de qualquer artista português. Aliás, a raison d'être da Galeria era divulgar e promover os artistas portugueses internacionalmente. Isso é que foi a razão de existir da Galeria e como estratégia para que isso pudesse acontecer, assumi a internacionalização convidando artistas estrangeiros para vir expôr a Portugal (desde o Mapplethorpe, ao José Maria Sicília, à Cindy Sherman, Joseph Kosuth, Michelangelo Pistoletto, Gilberto Zorio, Gerhard Merz, John Coplans, entre tantos outros), porque era uma Galeria que demonstrou essa capacidade e granjeou rapidamente credibilidade internacional o que lhe proporcionou poder expôr esses artistas. Obviamente que os artistas portugueses que trabalhavam com a Galeria saíram, de algum modo, beneficiados e, nas Feiras, o facto de ter, no mesmo stand, esses artistas estrangeiros a par de um Calhau, um Sarmento, um Molder, um Cabrita Reis, um Calapez, dava alguma credibilidade aos seus trabalhos. A Galeria passou a ser uma espécie de interface e de filtragem no acesso á legitimação internacional. Depois, nos anos '80 teve muita projecção, chegando até a ser considerada pelos opinion makers uma das duzentas melhores Galerias do mundo. Todos tinham um olhar no que fazia e a tinha uma programação muito, muito ambiciosa. E, de facto, foi possível fazê-lo porque estava em Lisboa; porque se estivesse em Nova Iorque ou em Londres provavelmente não teria sido possível (estar na periferia ajudou)... mas criámos um novo circuito e entrámos no outro circuito muito bem.
Curiosamente, é justamente nessa altura, que o Fernando Calhau começa a ter períodos de produção menos frequentes, não é?
R: Sim, ele depois ficou profissionalmente "na prateleira" a nível institucional, porque ficou como Assessor na SEC, mas sem lugar ... isso permitiu-lhe trabalhar um pouco mais mas também o afastou um pouco da relação com o "meio". Portanto, houve sempre uma "atracção" e "repulsa" pelo querer fazer mais e melhor e, por outro lado, não querer, ter low profile e fechar-se sobre si próprio. Acho que essa foi a grande imagem que o Fernando Calhau nos deixou. Acho que tem um trabalho a nível nacional relevante mas verdadeiramente tenho pena que ele nunca tenha respondido aos pedidos das oportunidades que lhe foram sendo criadas pela Galeria através das Feiras e não ter sido possível, como a outros, responder segundo o ritmo de solicitações que vinham lá de fora. Havia a possibilidade de ele ter feito exposições no estrangeiro, de ter trabalhado lá, de se ter entusiasmado como os outros; mas ele negou sempre isso, não aproveitou.
Grande parte do espólio do Fernando Calhau foi doado à Gulbenkian: tem acompanhado o que tem sido feito desde que ele morreu, ou não?
R: Tenho. Tenho acompanhado, aliás tenho muita obra do Fernando Calhau (algumas peças bastante interessantes). A última exposição da Gulbenkian, que foi comissariada pelo Nuno Faria, foi prematura. Penso que deviam ter amadurecido mais essa exposição. Não havia que fazer exposições em "honra" do Fernando Calhau. Ele tinha acabado de fazer uma há pouco tempo e era preferível ter espaçado mais essa exposição de maneira a podermos lê-la num contexto diferente e com distanciação. A partir daí aparecem obras aqui e ali ... o trabalho dele está bem documentado, julgo eu, pelas exposições que fez na Gulbenkian ... falta saber, de facto, a relevância que ele teve nos anos 80 e principalmente nos anos 70. Nos anos 70 foi mais percursor, começou mais cedo do que nós, concentrou-se mais e focalizou melhor ...
Sim e teve um feedback muito grande e positivo da crítica ... e muito consensual ...
R: Sim e muito conceptual também. E era muito oficinal também porque ele fazia um trabalho muito ligado à Sociedade Gravura e portanto tinha esse know how ...
Pois era um virtuoso, não era?
R: Sim, era um virtuoso-aplicado, era muito dedicado e era um amante daquilo que fazia. O que fazia, fazia-o bem. Foi bom para nós que lidávamos com ele porque nos incentivava.
Era um estímulo?
R: Era um estímulo, competíamos saudavelmente. Também o facto dele ter pertencido aos júris das Bienais como representante da SEC ou estar nas Comissões de Compras para as Colecções da Caixa Geral, do Estado e acho que também de Serralves... isso criou-lhe um problema complicado de relacionamento com outros artistas e essa foi a razão aliás porque no final até deixei de trabalhar com ele. Tornou-se incompatível para mim. A Galeria tinha uma vocação internacional e ficava manietada e impossibilitada de trabalhar com os artistas que no fundo tinham acedido a trabalhar no Estado ou noutras Instituições: era o caso do Fernando Calhau, o caso do Jorge Molder, o caso do Rui Sanches. O Julião Sarmento optou desde logo por abandonar a SEC e aproveitar esta nova janela de oportunidade. Essa situação criou um problema de compatibilidade sendo a Galeria prejudicada por isso, o que levou a que, em '94, acabasse com a representação dos artistas e mudasse o nome de Cómicos para Luís Serpa começando um novo projecto, um novo período da Galeria. Não representar nenhum artista e ser apenas responsável pelos projectos site-specific que cada um fazia. Fiquei livremente a trabalhar com todos aqueles que quis. A programação e o Livro que publiquei por ocasião da celebração dos 20 anos (em 2004, na Cordoaria Nacional, em Lisboa), prova que a qualidade da programação até foi implementada a partir do momento em que recomeçámos em '94 (com o Bob Wilson e o projecto "Alice"), continuámos essa métrica de exposições internacionais. E, digo-lhe mesmo, hoje 80% dos artistas com quem trabalho são estrangeiros. Essa opção "independente", proporcionou que me afirmasse também como curador. E isso é bom, porque algumas exposições tem sido expostas em Museus e têm transitado para o estrangeiro ... e foi pena que o Fernando Calhau não tenha aproveitado a dinâmica que se tinha criado, com os opinion makers que vinham a Lisboa, para estar integrado nesse grupo. Acho que ele teria conseguido algumas exposições importantes e hoje poderia ter um currículo em que os anos '80 teriam sido a plataforma de internacionalização para ele.
Mas quando me falava à pouco do feedback que o trabalho dele tinha internacionalmente, que tipo de feedback era, era uma curiosidade?
R: O trabalho dele era muito bem feito, portanto ...
Mas também era muito exigente, não é de empatia óbvia ...
R: É exigente mas é bem feito e para quem está na onda do minimalismo percebe que há um artista que pode viver em Portugal mas que tem um trabalho consistente e isso pode entrar numa triangulação, numa constelação com outros artistas que trabalham aqui e ali e que pertencem àquela tendência. E o trabalho dele era muito consistente em termos plásticos ... era bem executado, tinha presença, era sustentável em termos estéticos e ele podia ter integrado essa constelação internacional.
E acha que era possível, neste momento, voltar a recuperá-lo de alguma forma? Eu digo isto porque o que se verifica é que, houve de facto algumas exposições (muito poucas) com um carácter muito retrospectivo e muito lúgubre, mas pouca foi a investigação que foi feita, pouco foi o pensamento crítico que foi adicionado. Há até casos de situações de estudos que omitem completamente o Calhau ... estudos de carácter historicista em que se manifesta uma espécie de esquecimento de que existiu aquela figura ... e por isso é que eu pergunto isto: se acha que era possível recuperá-lo internacionalmente neste momento?
R: Repare, há duas maneiras de recuperar um artista: um é ao nível do mercado privado, (as obras têm que circular); e, outro, é ao nível institucional (as obras tem que ser expostas). Como a maior parte das obras do Fernando Calhau ficaram na esfera das instituições, falta a faceta do mercado privado. O mercado privado cauciona e o mercado institucional legitima. Na minha opinião, a gestão da obra do Fernando Calhau foi mal gerida dado que, logo de início, queimaram-se etapas que eram importantes para que o trabalho dele fosse circulando, tendo visibilidade progressiva, entrando nos diversos circuitos. Assim não, ficou numa espécie de Gruta de Alibabá ...
... de Cápsula ...
R: Ficou precisamente encapsulado, gerido institucionalmente (nem sequer os herdeiros ou pessoas que poderiam ter ficado com o Estate do artista podem usar estratégias de afirmação). E, ao nível do mercado, o Fernando Calhau praticamente desapareceu ...
O Luís ainda tem algumas coisas não é?
R: Tenho, tenho algumas coisas, de algum porte; mas são peças de Museu, não são peças para serem adquiridas por particulares e provavelmente nunca entrarão no circuito comercial.
O facto de uma instituição, como a Gulbenkian, ter um espólio significativo (tem alguns, faltam-lhe outros) e, para assegurar que seja a Gulbenkian a fazer a sua melhor gestão, então terá mesmo que ir ao mercado e comprar porque há coisas importantes que faltam no espólio (eu tenho peças muito significativas); mas cabe-lhe então a responsabilidade, a partir de agora, de fazer a gestão criteriosa, estratégica de divulgação da sua obra. Se acharem para isso conveniente e se estiver nos objectivos da instituição (o que lhe traz uma responsabilidade acrescida); mas duvido que o queiram fazer ... o seu objectivo não é promover a reputação de um determinado artista. Não compete a uma instituição fazer isso, i.é, pode legitimar isso mas não tem que o fazer como objectivo. Claro que os estudos teóricos e a possibilidade que se pode dar a académicos e a críticos a possibilidade de estudar mais aprofundadamente a obra dele é uma função que eu penso que a Fundação Gulbenkian poderia ter ... proporcionar a jovens académicos debruçarem-se sobre o trabalho dele e pontualmente organizar iniciativas de contexto nas quais o Fernando Calhau esteja. Agora, fazer retrospectivas em que "queimem" todas as obras que têm, foi estrategicamente errado ... foram feitas em períodos muito próximos do falecimento dele e agora pode ficar na "prateleira-do-esquecimento" até que alguém um dia se lembre de o voltar a (re)contextualizar com obras de outros artistas e ao nível internacional. Isso foi a estratégia da Galeria e resultou plenamente.
Muito bem. Muito obrigada. Quer acrescentar mais alguma coisa?
R: Não. Só que tenho saudades dele, claro.