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Diogo Pimentão
Artista, ex-assistente de Fernando Calhau
(depoimento, sobre Fernando Calhau, recolhido por email em Novembro 2009)
Só o Fernando Calhau para me fazer escrever quando a minha escrita é o desenho.
Trabalhei um ano e meio no atelier de quem tinha seis meses de vida para viver a sua obra: o tempo, a vida, o limite da matéria, o preto com todas as suas nuances... Uma obra grave de uma pessoa dotada de um humor feroz capaz de perturbar a sensibilidade dos mais pudicos.
Antes de ter sido seu assistente conheci-o enquanto director do Instituto das Artes.
Telefonei a marcar encontro no IAC para lhe pedir que me escrevesse uma carta e assim facilitar a emissão de um visto junto da embaixada dos Estados Unidos. A carta que me escreveu apenas informava que eu viajava enquanto assistente de Julião Sarmento para Nova York onde iria ajudar a preparar e montar uma exposiçao. Claro que com essa carta do IAC obtive o visto máximo, com o qual ainda viajei várias vezes depois do Fernando Calhau ter falecido. Pois, boa maneira de começar uma relaçao: em dívida, logo ali no primeiro encontro.
Aprendi, ao trabalhar para o Julião Sarmento (entre mil outras coisas), algo que achei particularmente curioso: a dar espaço ao acidente. Embora o trabalho fosse de extrema minúcia também era importante para o Julião que se desse espaço para deixar as coisas acontecer. E, sabendo isto, eu ou qualquer outro assistente que tivesse tido ou viesse a ter podia participar nesse acontecer, determinado pelo próprio trabalho.
Quando mais tarde vim a trabalhar para o Fernando Calhau a responsabilidade e premissas eram outras. Até gosto de pensar que nunca fui assistente dele porque não fazia parte da sua prática artística trabalhar com assistentes. Só quando adoeceu é que foi obrigado a recorrer a um (no entanto sabe-se que era óptimo gestor de equipa no IAC).
Ajudei-o quando não podia ser ele a fazer o que sempre fez sozinho. E para mim surgiu uma responsabilidade diferente e abriu-se um mundo novo.
Quem já viu fotografias do interior do atelier do Fernando Calhau não imagina que ao transpor a porta do atelier todo manchado de negro se pisava um chão de madeira encerado ladeado de corredores de branco imaculado, recheados de delicadas obras de colegas e amigos. O atelier era uma divisão da sua casa. Por vezes o trabalho mais delicado podia ser feito na sala, e chegámos a trabalhar na cozinha. Ainda hoje gosto de me lembrar das obras que se iam acumulando no corredor antes das exposições. Nunca foi necessário recorrer a outro espaço que o da sua casa. Era uma vivência muito próxima com a obra. Até havia uma porta do atelier (que nunca se abria) que dava para o quarto de dormir.
Sempre admirei, com alguma inveja, o Calhau entrar no atelier com a sua melhor camisa e umas belas calças para ir misturar tintas, trabalhar com aerógrafo e desenhar a carvão! E conseguia sair sem uma mancha de cinzento na roupa!
Um aspecto da obra do Fernando Calhau que diz bastante sobre ele é a fina película da sua pintura (mesmo em alguns desenhos). Um fina camada formada por inúmeras camadas de tinta polidas com lixa. Quase como uma revelação fotográfica que surpreendentemente tomava forma e nao se tocava mais.
O Calhau como pessoa era de uma grande simplicidade mas de geologia complexa. Com um ritmo de trabalho lento mas firme.
Que melhor imagem que a de um calhau? Uma pedra nem demasiado grande nem demasiado pequena mas firme. Solta de uma rocha, é formada por uma erosão despretenciosa. Peguem num calhau qualquer da rua e tentem sustentar que esse calhau nao tem uma história particular que o levou àquela quina quebrada ou ao arredondado de uma outra face. Há disforme mais enigmático que o de um calhau? Nao temos que ir a uma mina profunda nos confins do mundo para o ir buscar, basta sair à rua. Num calhau já todos demos um pontapé despreocupado e a muitos já ajudou a desencadear revoluções. Um calhau nao é apenas um seixo que nas mãos de outro faz belos saltos no lago para depois se afundar. Ser o calhau no meio de tantos é que está a dificuldade e o mérito, podemos imaginar a história de um calhau que queria ser pepita - é ridículo. Um calhau é uma pedra à solta.
E soltas também são as gravuras, os desenhos, as fotografias, os slides, as esculturas, os néones, as montagens, os super 8s, os vídeos, as acções... Tudo isto com uma unidade estonteante.
Desenhos a lápis e tinta de bomba de spray, outros a grafite feitos em casa sentado no sofá da sala, fendas, saídas ou entradas, originárias do mundo (como disse Leonard Cohen "there's a crack in almost everything, that's how the light gets in"). Ainda no atelier durante as pinturas negras a aerógrafo imaginamos a música de um minimalista americano mas não, ouvia-se invariavelmente Rock and Roll. Fotografias numa praia com um quadrado imaginário feito à mão pelo próprio artista, outras em processo de auto apagamento que ao desaparecerem completamente podem voltar a ser imprimidas para passarem pelo mesmo processo. Super 8s, um deles com ele, o "Destruição". Esculturas em aço e neon a delinear, determinar e criar espaços: quem é que nao reparou no pavilhao branco, na exposição Um Passo No Escuro com o Rui Chafes, numa peça instalada no jardim (dois néones FORM e LIFE). Apesar de estarem fora eram as obras que mais presença tinham no interior, cada um na sua árvore, acabando por estar e não estar em lado nenhum...
Eu nunca sabia o que ia ajudar a fazer no dia seguinte. Era um autêntico work in progress. Se lhe perguntasse o que iríamos fazer no dia seguinte ele saberia? Acho que sim, não eramos assim tão próximos. Isso é o que hoje ainda me magoa, sentir que ainda tinha muito para ver e aprender ao lado dele.
Confessou, creio que a título de conselho a um jovem, que se soubesse ter tão pouco tempo de vida se teria dedicado ainda mais ao seu próprio trabalho artístico. Não sei se acredito que o fizesse, porque ele era um altruista. Sempre falou abertamente do seu estado de saude e até brincava com a situação.
Trabalhei para o Calhau num domingo, na segunda chorei a ida dele para o hospital e na terça ri-me por ele ter conseguido enganar a morte tanto tempo. Ele podia tê-la enganado mais mas, como o próprio Calhau diria, que piada é que isso tinha?