Delfim Sardo
Curador
(conversa sobre Fernando Calhau. Setembro 2009)
Pedia-lhe que localizasse o momento em que conheceu o Calhau.
R: Eu conheci o Calhau em Abril de 1990. Eu estava a fazer o curso de Gestão das Artes.
Da Lusófona?
R: não, do INA - Instituto Nacional de Administração, com a Joan Jeffrey. Os meus colegas de curso eram ...
O Jorge Barreto Xavier ...
R: Não, o Jorge Barreto Xavier tinha feito no ano anterior. O Vítor Pomar, o Carlos Pimenta (o do teatro), a Rosarinho Sousa Machado (da Culturgest), o António Sequeira Lopes tinha feito no ano anterior, o Carlos Carvalho que era administrador da Valentim de Carvalho, uma série de pessoas ... e uma das pessoas era a Margarida Veiga. Entretanto o Santana Lopes tomou posse como Secretário de Estado da Cultura no dia 9 de Janeiro de 1990 e convidou a Margarida Veiga para sub-directora do Instituto do Património. O Calhau na altura era Chefe da Divisão de Artes Plásticas da Secretaria de Estado da Cultura. Quando vagou o lugar dela, e embora eu não fosse funcionário público, ela falou com o Calhau e eles quiseram que eu ficasse em Chefe de Divisão. Portanto eu conheci o Calhau nesse contexto. Fui à SEC e o Calhau ia a passar entre o meu gabinete e o escritório dele com uma pasta e uma escova de dentes na mão (porque ele lavava sempre os dentes depois do almoço). Foi assim que o conheci e comecei depois a trabalhar lá em Maio. Logo a seguir comecei a estar com ele frequentemente, alias diariamente, na Secretaria de Estado da Cultura.
Mas antes disso já conhecia o trabalho dele?
R: Sim. A primeira exposição que eu vi do Calhau foi em 1981/82 em Coimbra. No Círculo de Artes Plásticas. Na altura, aliás, foi aí que eu vi a primeira exposição do Calhau e foi aí que eu vi a primeira exposição do Michael Biberstein.
E nessa altura que percepção teve sobre aquilo que viu? Ficou interessado?
R: Sim fiquei interessado. Nessa altura a minha cultura artística era muito primária. Tinha 18 anos, o 25 de Abril tinha sido há muito pouco tempo, a informação circulante era muito pouca e eu estava a dar os meus primeiros passos no interesse pelas artes ... portanto é natural que tenha ficado interessado. Quando conheci o Calhau pessoalmente conhecia as pinturas verdes, conhecia alguma pintura monocromática da década de oitenta, pouco mais, mas tinha interesse pela obra dele.
Portanto não viu a primeira exposição individual do Calhau (seria muito novo) em 1968, na Gravura?
R: Não, tinha 6 anos.
Nessa exposição há o factor de precocidade (ele era muito novo, tinha 20 anos). O que não era uma novidade na altura (em que outros artistas se tinham estreado até mais cedo) .
R: Não, não era uma novidade. Aliás, eu já escrevi isso numa série de sítios. O Calhau fez a sua primeira exposição individual com 20 mas começou, digamos que, o seu trabalho sério com 18 anos. O Vítor Pomar fez a primeira exposição com 16. Os primeiros trabalhos do Palolo fê-los aos 16 anos. Há de facto uma série de artistas dessa geração que começaram o percurso cedíssimo. Coisa que nós agora temos a ideia de que as pessoas começam os percursos muito cedo, mas ficamos espantados quando confrontamos com a idade com que eles começaram a expôr ou o trabalho começou a ser notado ou quando começaram a escrever sobre o trabalho.
E, por acaso, o caso do Calhau é um caso muito curioso. Aliás, o Calhau é talvez o artista que mais cedo tem um reconhecimento mais transversal da crítica institucionalizada.
Era aí que eu queria chegar, justamente.
R: O Calhau reúne a unanimidade de pessoas tão díspares, na altura, em lados tão opostos da barreira como o Ernesto de Sousa e o José Augusto França, o Rui Mário Gonçalves, o Fernando Pernes, o próprio Fernando Azevedo. Todos eles tinham um apreço enorme pela obra do Calhau, curiosamente. Porquê? Porque provavelmente a obra do Calhau reunia características que agradavam a ambos, por motivos diversos. Eu acho que ao José Augusto França ou ao Rui Mário Gonçalves agradava sobretudo o rigor e a qualidade pictórica e que ao Ernesto de Sousa agradava sobretudo a capacidade de risco e a contemporaneidade que ele tinha e onde se situava no contexto internacional. E portanto, cada um deles era fascinado por zonas diferentes do trabalho.
Projectavam portanto as suas ...
R: Projectavam as suas preocupações particulares em aspectos diferentes do trabalho do Calhau. E acho que todos eles legitimamente, não é?
Claro. Realmente a obra do Calhau tem essa enorme ambivalência.
R: pois, pois tem.
E sobre esta questão da unanimidade da crítica? Qual era a percepção dele sobre isto? Alguma vez falou com ele sobre isso?
R: Não, por acaso não. Quando eu o conheci essa unanimidade já não era tão actuante. E eu conheci-o numa altura em que ele estava num enorme abrandamento da produção criativa. A primeira exposição que o Calhau fez desde que eu o conheci foi, se a memória não me trai, uma exposição que ele fez no Luís Serpa, uma exposição de desenhos chamada "Diários" (talvez de 1991). Aliás, esta exposição surgiu e o título para a exposição surgiu de uma quase circunstância ... o Calhau andava a fazer aqueles desenhos e andava a fazer aqueles desenhos de uma forma ... como quem anda à procura de alguma coisa ... ele tinha aquela actividade de desenhar diariamente, desenhava em folhas grandes, em folhas pequenas e desenhava em folhas pequeniníssimas (sistematicamente) e ele mostrava aquilo todos os dias, todos os dias chegava com desenhos novos, de manhã, para o trabalho ...
Mas mostrava ... a si? Mostrava-lhe a si?
R: Sim, mostrava-me assim molhadas de desenhos e dizia: "Olha o que eu fiz ontem à noite" ... e houve uma altura em que me disse: "Olha eu vou fazer uma exposição com estes desenhos" e eu disse-lhe: "Bestial e tal" e ele estava à procura de como chamar a exposição e eu disse-lhe: "Olha chama-lhe Diários, porque é o que tens feito, é uma coisa de todos os dias". Portanto não houve nenhuma razão particular para aquele título a não ser esta. Mas a exposição, na altura, foi curiosa porque ela por um lado revelava aquela enorme proficiência que ele tinha num domínio técnico específico que era o carvão e por outro lado funcionou como uma espécie de banco de ensaio para outras coisas e para depois voltar a pensar numa escala maior, coisa que ele aliás chegou a fazer numa outra exposição no Luís Serpa: a "Razão/ Racio". Mas foi um bom banco de ensaio para ele e nessa exposição era muito presente essa qualidade da manufactura. Uma crítica de Arte da altura entrou na exposição (não na inauguração mas depois ... estava lá eu e o Calhau), e entrou, olhou à volta e disse: "Ah, estás a fazer fotografias?" e ele disse "... não são fotografias, são desenhos" ... estranho não é? Mas, num olhar obviamente desatento, eu percebo a confusão. Eles não têm nenhuma qualidade fotográfica mas têm uma precisão que foi entendida como fotografia, ou como fotografia solarizada, qualquer coisa desse género.
Mas então em relação à questão da precocidade ...
R: Pois isto vinha tudo a propósito. Não, eu nunca falei muito com ele porque já o conheci numa fase de grande abrandamento do ritmo criativo dele. Quando eu o conheci ele não estava tão focado na sua obra artística, estava mais focado no trabalho dele na Secretaria de Estado da Cultura e nos problemas institucionais que ele tinha na altura e portanto já não havia tanto essa unanimidade, ela já não estava tão actuante.
Eu acho que o Calhau era muito abrangente em termos das suas relações humanas mas depois valorizava o que valorizava. Suponho que sim, que ele valorizaria o facto de haver um apreço crítico em relação à obra dele, mas não valorizaria todos esses apreços da mesma maneira porque também não tinha por todos esses agentes o mesmo ...
... respeito intelectual?
R: exacto.
Em relação à gravura, no início da prática dele, também concorda obviamente (e aliás já o escreveu) que esse início, essa aproximação à expressão plástica e visual por via da gravura e da serigrafia, condensa ali uma espécie de matriz para uma série de coisas que ele vem a desenvolver mais tarde e que se mantém presentes no trabalho dele até ao fim.
R: Tipologicamente em relação à gravura em dois aspectos: o eliminar da cor, não é? Com as gravuras brancas, de selo branco ...
... de relevo.
R: ... isso. E a utilização da fotogravura, quando ele descobre a fotogravura (primeiro ingenuamente e depois de uma forma mais apurada com o Bartolomeu Cid dos Santos).
Ingenuamente como? Por acaso?
R: Não, porque ele cá tinha muito poucas condições para fazer fotogravura e as primeiras fotogravuras dele são aliás muito mais primárias. Quando vai para Londres, com o Bartolomeu, é que ele de facto aperfeiçoa a fotogravura. E era o que ele queria. Depois a partir daí começa o trabalho com os ozalides e com o trabalho fotográfico a seguir. Portanto esses dois aspectos na gravura são importantes: Um pelo apagamento da imagem, pelo apagamento da cor e o outro pela maneira como abrem para o universo fotográfico e para a reprodução mecânica da imagem, que era uma coisa que lhe interessava, embora a fotografia em si não lhe interessasse. Ele dizia sempre que não gostava de fotografia.
Eu acho que ele ter começado pela gravura é importante porque a gravura permitia-lhe, mais uma vez, conciliar duas coisas antagónicas: que é apagar a manualidade, o gesto, mas ao mesmo tempo desenvolver um processo que é profundamente manual. Ele era realmente uma pessoa que trabalhava muito bem a gravura e sabia muito de gravura e era uma coisa totalmente manual, com um enorme trabalho de ...
... de persistência, de rigor ...
R: ... de persistência, de rigor e de execução manual. E ao mesmo tempo o resultado final era um resultado em que a mão estava apagada pela reprodução mecânica. É um bocado simbólico dessa ambivalência que o trabalho dele depois continuou a revelar.
E tem ideia se esta persistência e esta espécie de obsessão já muito presente nestes trabalhos desta fase inicial, se era uma coisa já programática, ou seja, ele já tinha consciência de onde queria chegar, do que é que aquilo ia dar?
R: Não, não acho que tenha sido programático. Não tenho ideia, embora eu não o conhecesse nessa altura, mas não tenho ideia de que fosse, na altura, uma coisa programática. Eu acho que na altura surge como uma vontade que ele tinha de se aproximar de algumas referências que ele tinha internacionais (sobretudo pop, na altura) e portanto esse lado de não manualidade que a Pop introduz durante os anos 50 ... ele disso tinha consciência, mas não creio que correspondesse a um eixo programático que nos permita dizer que estaria ali a nascer um interesse conceptual ... eu acho que no início não. Depois sim, vai-se aproximando das suas referências mais do universo do minimal e do conceptual que lhe interessam também sempre nessa tipologia.
E é curioso porque o Calhau teve uma actividade muito intensa como fazedor de Colecções de Arte, comprou para a Caixa Geral de Depósitos, comprou para as Colecções do Estado, etc. Nas compras do Calhau (e tenho agora isso em mãos porque estou a preparar o texto sobre a Colecção da CGDepósitos) é muito curioso porque há compras em que ele vai à procura exactamente de uma expressividade de mão que ele não tinha no trabalho dele e que recusava, o que não é comum.
Expressividade que não tinha porque não queria ter obviamente.
R: sim, sim, porque não queria ter.
Ou seja é como se fosse à procura do que lhe é oposto?
R: precisamente. O que não é nada comum nos artistas quando compram. Os artistas quando compram tendem a ir à procura do que lhes é parecido ...
... sim duma espécie de família identitária.
R: exactamente. Ele não tinha isso. Eu lembro-me de ele ter comprado, para a colecção da SEC, as primeiras pinturas do José Loureiro ("As bocas" com aquelas massas de tinta) que era o oposto do interesse dele como artista. E eu achei muito curioso na altura, aliás assisti à proposta de compra e portanto acho muito curioso que ele tivesse essa ambivalência e esse interesse também por coisas que lhe eram completamente antagónicas.
Mas acha que esse interesse residia num interesse particular dele, de facto, como espectador ou acha que era uma espécie de sentido de responsabilidade, do tipo: "Estou a adquirir para uma colecção pública, com dinheiro público e portanto tenho de ser ambivalente"?
R: Não, não acho. Eu acho que ele tinha a sua quota parte de sentido de responsabilidade nas escolhas, aliás ele até dizia que uma colecção deve ter uma quota parte de 10 a 15 % de disparate, que era aquilo que eram as concessões possíveis para garantir a abrangência de uma colecção. Eu acho é que ele tinha uma boa capacidade, aliás uma capacidade fantástica de olhar. Ele sabia reconhecer a qualidade mesmo naquilo que não pertencia à sua família estética e isso não é comum, sobretudo nos artistas, não é comum. Mas ele tinha essa disponibilidade enorme para olhar. Olhava muito bem. Eu nunca conheci nenhum artista, nenhuma pessoa aliás, ninguém com uma tal capacidade de olhar, de juízo crítico imediato intuitivo (e este juízo intuitivo não queria dizer que ele não cuidasse dele, ele cuidava dele). Ele olhava com muita atenção, era uma pessoa muito atenta ... nunca conheci ninguém assim ... era de entrar numa sala de exposição e dizer: "Aquele e aquele são bons ... o resto não interessa" e em minha opinião ele raramente se enganava.
Era uma categoria judicativa que ele próprio utilizava com o trabalho dele, não é? O critério do funciona/ não funciona para determinar quando é que uma obra estaria acabada ou não, por exemplo.
R; sim, sim, mas o trabalho dele passou por duas fases muito distintas: uma que é a continuação de uma coisa que ele vinha a fazer desde o princípio que é uma execução de um plano, em que ele tinha um plano e executava o plano (umas vezes a execução do plano era uma maçada, era uma chatice, mas ele não deixava de o executar rigorosamente). O plano definia tudo: uma pintura monocromática, preta, espatulada, com uma determinada escala, uma determinada proporção, às vezes fazia ensaios a grafite para mostrar como é que tinham de ser as manchas ... e depois executava. E a certa altura, em 1998 ele começou a voltar a uma pintura evolutiva. Primeiro mesmo a pincel fazendo uma pintura que responde a si própria, começando a pintar e a perceber qual é a necessidade de gestão do espaço pictórico e ir reequilibrando, sem ter um plano pré-definido. Tinha um plano pré-definido que era a paleta com que ele trabalhava (os cinzentos e os pretos, aquela paleta muito limitada com que ele trabalhava).
E eventualmente a escala estaria também pré-definida e os formatos.
R: Estava até porque ele trabalhava praticamente sempre com os mesmos formatos, com o quadrado, e com as mesmas dimensões. Portanto tinha estas duas directrizes mas depois a execução da pintura em si não obedecia a nenhum plano (coisa que não acontecia nas anteriores, começou aqui). Habituou-se a trabalhar à trincha e à espátula e depois passou para o trabalho a spray do último período dele, que era também um trabalho que ia evoluindo e portanto lhe exigia um olhar claramente de pintor, não é? De pergunta/ resposta da própria tela. E isso marca uma diferença muito grande no trabalho dele e acho que ele aí não era tão taxativo nas suas respostas porque não era uma coisa, como os anteriores, que estava pronta e sobre a qual pudesse atestar ou ajuizar se funciona ou não funciona. Ía fazendo, ía construindo. Quem aliás acompanhou esse processo muito, muito de perto foi o Diogo Pimentão que foi assistente dele nesse período. Foi aliás assistente dele até à fase final quando o Calhau já não tinha força para agarrar no compressor e portanto o Diogo segurava-lhe a mão e o Calhau dizia: "mais para trás, mais para a frente" ... mas era o Calhau que segurava no compressor, esta distinção é muito importante, não bastava estar ali a olhar e a orientar, era preciso ele próprio segurar no compressor ... e aí o juízo era diferente, o juízo sobre a obra era diferente. Mas de facto sempre teve essa terminologia, que é uma terminologia que vem dos minimais, não é? Que é em si uma categoria estética muito exótica mas ...
... mas é possivelmente das mais fiáveis e das mais praticadas.
R: sim, sim, uma das mais operativas.
Ocorre-me perguntar-lhe aqui outra coisa: o Calhau dizia que ao contrário do Julião, por exemplo, que se dizia uma artista, ele era um Pintor (especificamente). O que é que acha que ele queria dizer com isto? Acrescento que o Julião me disse que o Calhau era um poço de contradições várias e que perante a possibilidade de escolher entre uma retrospectiva do Ghirlandaio ou a Documenta, o Calhau escolheria a retrospectiva do Ghirlandaio.
R: Eu acho que o Julião está a exagerar um bocadinho. Mas eu acho que o Calhau olhava sempre para o seu trabalho como um trabalho que se situava sempre na tradição da Pintura. Era daí que ele vinha. E portanto, o trabalho dele era um prolongamento dos problemas da prática da pintura tal como ela vinha desde o Renascimento.
Mesmo na prática da Gravura, mesmo na prática da Fotogravura, mesmo na prática da Fotografia, mesmo no Filme?
R: Não, eu acho que aí há outra coisa. Eu acho que embora nós possamos dizer que a prática dele da Fotografia e mesmo do Filme possa ter a ver com práticas pictóricas (no Filme até mais do que na Fotografia). Eu acho que a Fotografia, no período em que ele começa a usar a Fotografia, a Fotogravura, os Ozalides, etc, surgem num momento em que ele realmente havia cortado com a prática da Pintura porque achou que estava num beco sem saída. É muito curioso nós vermos, por exemplo, a evolução das pinturas verdes (que eram as últimas que ele tinha feito ... fê-las entre 1972-1975). As pinturas verdes nascem do trabalho que ele vinha a fazer nas Belas Artes (que eram aqueles relvados policromados, aliás o trabalho tese dele da Escola que é essa espécie de relvado policromado, matizado), em que o verde vai começando a ocupar a superfície e ele começa com as telas verdes que têm umas marcações, ou um xis ou uma moldura. Basicamente é isto. O xis pode estar no centro, pode estar mais chegado à margem, a moldura pode aparecer ou pode não aparecer, mas basicamente é isto. Ele usa quase sempre as mesmas dimensões, os mesmos formatos. Os quadros de 1975 (os últimos da série) são os maiores ... e nos maiores ele vai avançando dessa moldura e dessa marcação de cruz até à sua supressão. Há um momento em que ela desaparece praticamente. E os dois últimos que fez são um completamente monocromático e outro que tem um degradé com uma zona um pouco mais amarela em cima e uma zona um pouco mais verde em baixo mas é subtilíssima ... digamos que a maior parte das pessoas não a vê. Ela está lá mas não é muito visível. E portanto, quando ele chega ao monocromático verde é como se resumisse a história da pintura até aquele momento que era, para ele, um esgotamento. Chegou ao monocromático portanto chegou ao fim da pintura e portanto estava enjoado da pintura (ele tinha mesmo esta expressão), e então optou por formas mais distantes para não mexer em tintas, não mexer em telas ... era mais uma recusa. E essa recusa durou-lhe de 1975 até 1989, até fazer o "Night Works". É o "Night Works" que vai recolocar a questão da prática da fotografia, a questão da imagem e a questão da pintura. Porque o problema dele passa a ser o problema da relação da pintura com a imagem. Como é que a imagem se relaciona com a Pintura? A pintura tem alguma coisa a ver com a imagem? A pintura é uma imagem? Ou a pintura é o apagamento da imagem? Ou as camadas da pintura são a supressão da imagem? Era o tipo de questões que ele na altura se foi colocando e, por isso, acho que o "Night Works" acaba por ser uma espécie de grande dobra ou a súmula de todo esse tipo de questões.
Mas é também, creio eu, não sei exactamente porque eu não vi a obra (vi-a só em 2001 na exposição no CAM) ... mas parece-me que aí aparece pela primeira vez, e não sei se estou a errar, um carácter de preocupação instalativa, que antes não se manifestava da mesma forma. Será assim?
R: Não, antes já se manifestava. Quando ele fez o "Stage" que é aquela instalação fotográfica onde as fotografias estão todas colocadas à volta de uma sala. Já há aí uma clara preocupação com a tipologia da instalação. Também podemos falar nisso nas zonas seriais ... quando ele faz a série fotográfica daquele close up que vai até ao negro ... aquelas sucessivas ampliações em fotocópia que levam até ao negro, há já uma preocupação de instalação ... têm de ser seriais, têm de ter o mesmo intervalo entre elas, etc.
Eu acho que a questão da instalação nele foi sempre uma constante, embora não tenha visto as exposições desse período dos anos 70, não sei como é que ele era a montá-las mas vi algumas fotografias e havia uma apurado rigor.
Já falámos aqui ... esta produção das fotografias e das fotogravuras acontece sobretudo e tecnicamente duma forma mais apurada em Londres quando ele vai com uma Bolsa da Gulbenkian estudar gravura para a Slade School com o Bartolomeu Cid dos Santos e aí aparece de uma forma muito clara, sobretudo nos filmes, um interesse pela percepção do tempo, pela representação do tempo, pelo espaço também, portanto, mais uma vez e apesar de ele dizer que não estava a produzir paisagens, ele estava claramente a falar de Paisagem.
R: Pois, sim, sim. Eu acho que há um namoro permanente com a Paisagem. Digamos, ele tecnicamente não estava de facto a produzir paisagens. Desde essas pinturas da relva que ele sempre teve esse interesse. Claro que não é paisagem.
Não, claro. Há sim uma espécie de cartografia, de marcação.
R: Exactamente. Precisamente é uma cartografia. É feita virada para o chão, virada para o céu.
Há uma espécie de enquadramento seleccionado.
R: ... há uma enquadramento seleccionado mas não segundo a tipologia paisagística. Um horizonte implica um cima e um baixo. O momento em que o universo da paisagem lhe entra mais é nos filmes. Porque os filmes são feitos num determinado sítio, num local, na praia e portanto têm, necessariamente, uma linha de horizonte e claro que uma linha de horizonte implica uma formatação paisagística, uma organização do campo visual entre o que está acima da linha do horizonte e o que está abaixo da linha do horizonte (que eu acho que é determinante na formulação da paisagem). Quando não existe essa demarcação da linha do horizonte muito dificilmente um trabalho é paisagístico porque implica justamente essa questão da hierarquia do campo visual. E o Calhau, precisamente, não tem esse problema da hierarquia do campo visual porque quando trata um solo é um solo e num solo o que está mais acima ou mais abaixo pertence ao mesmo plano. Quando trabalho o céu também não há uma questão nem de distância nem de cima e baixo. Eu acho que justamente essa questão ele tende sempre a tratá-la como a gestão de um suporte e, por isso, é muito curioso aquele filme "Destruição" quando ele pinta o ecrã e converte um universo de uma imagem ...
... num monocromo.
R: Numa superfície não hierarquizada por natureza. E percebo, por isso, que ele tenha recusado sempre a ideia de que trabalhava a paisagem. O que não quer dizer que ele não se interessasse por pintura de Paisagem.
... mas pode-se, de facto, tematizar a paisagem falando justamente daquilo que ela não é, ou não? Ou expondo aquilo que ela não é.
R: sim, sem dúvida. E por isso não rejeito totalmente esta ideia ... mas, de facto, ele não estava a produzir paisagens. Mas gostava de Paisagem, como estava a dizer ... ele adorava o Caspar David Friedrich, adorava ... eu lembro-me de termos ido a Schloss Charlottenburg, em Berlin, para ver os Friedrich's (que estavam lá. Na altura até havia uma grande exposição) e passámos horas lá dentro, completamente embasbacados. Porque ele tinha essa paixão pela pintura de paisagem e pelo Romantismo Alemão ... mas isso não correspondia a ele entender ou tipificar a sua obra como paisagística.
Sim claro ele afirmava o contrário precisamente. Em relação ainda aqui à carreira institucional do Calhau, que é longuíssima (segundo percebi demorou 25 anos).
R: Sim, ele entra para a Secretaria de Estado em 1976 e saiu em 1999 ou 2000, certamente. Em 1999 foi quando eu fiz o Molder em Veneza e ele ainda era Director do IAC.
Há uma coisa que me inquieta que é a falta de visibilidade que o trabalho dele, ou que o percurso dele, revela sobretudo a partir de um determinado período. Deve-se obviamente ao facto de ele não poder trabalhar com tanta persistência ou assiduidade (quando digo trabalhar refiro-me a trabalhar para mostrar para expor, porque provavelmente ele trabalharia todos os dias ... nos desenhos pequeninos, nas séries de pinturas de pequeno formato, nos ensaios mas não ...
R: Ele não trabalhava sempre diariamente. Nem em todos os períodos isso aconteceu. Eu acho que quando ele fazia esses desenhos foi mesmo para se forçar a trabalhar diariamente. Ele tinha uma regra que era nunca trabalhava ao Domingo, nunca pintava ao Domingo e dizia: "Eu não sou pintor de Domingo!".
Curioso. Era um statement, claro.
R: Suponho que depois de ter deixado a SEC já podia pintar ao Domingo se lhe apetecesse. Mas enquanto esteve na SEC não pintava ao Domingo, era uma regra.
Pois a falta de visibilidade do trabalho dele eu acho que tem a ver com dois aspectos:
Tem a ver com os lugares institucionais por onde ele passou e que, de facto, o fizeram tomar opções; tem a ver com a timidez dele, timidez relacional dele, tem a ver com alguma insegurança que ele tinha sempre em relação ao seu trabalho (porque ele era uma pessoa insegura, que manifestava inseguranças em relação ao seu trabalho), e tem a ver também com o facto de ele ter passado longos períodos com a produção muito curta, muito escassa. Durante a década de 80 ele tem períodos de enorme interrupção criativa. Quando eu fiz com ele e com o Michael Biberstein a exposição na Madeira, a exposição vinha de um longo período de interrupção na produção do Calhau ... ele não tinha trabalho recente.
Não é aí que começa ... há bocadinho estava a falar do momento em que ele começa, de facto, a relacionar-se com a Pintura como um Pintor?
R: É, é.
Porque há inclusivamente uma série de obras novas produzidas para a exposição, não é?
R: Há. Em dois casos específicos. Em duas salas. Havia as pinturas espatuladas precisamente que começavam a ter modelações de cinzentos, de céus e umas horizontais muito baixas, lindíssimas que eram 4 e funcionavam numa sala (foram feitas para uma sala) e no seguimento dessa exposição foi feito um trabalho de colaboração entre os dois: entre o Calhau e o Biberstein. Foram telas duplas, blind dates, em que o Biberstein fazia uma e o Calhau outra. Combinaram a dimensão, não viram o que é que o outro estava a fazer e combinavam-se as duas no fim. E é engraçado ... o Mike pintou monocromáticos pretos e o Calhau pintou uma espécie de céus cinzentos, atmosféricos, nublados. Portanto fizeram assim uma espécie de troca e depois quando eles juntaram as coisas foi uma surpresa. Há 3 exemplares dessas telas e são também um momento de viragem no trabalho dele. Uma tenho-a eu, outra tinha o Calhau e outra tinha o Biberstein.
Mas elas existem como uma obra única ou podem ser apresentadas separadamente?
R: Não, não, como obra única.
Ou seja, completaram-se como obra no momento em que se encontraram?
R: Exactamente. Cada uma delas é um Calhau/Biberstein.
Mas ainda em relação à questão da visibilidade. Estava a dizer-me que ...
R: Pois, pois ... com tudo isto ele tinha a insegurança e o próprio trabalho dele era um trabalho cíclico. Ele não tinha o mesmo ritmo de trabalho permanentemente. Tinha períodos de grande paragem criativa, tinha períodos de grande desconfiança criativa e o Calhau era uma pessoa de moods emocionais também flutuantes e isso condicionava também o trabalho dele.
Pois a minha questão era que é óbvio, achei eu, que uma carreira institucional levada a sério como ele, aparentemente, levou até ao fim, não lhe deixaria disponibilidade mental nem de tempo para poder produzir com regularidade mas também, de alguma forma, achei estranho que tendo ele acesso privilegiado a contactos, a curadores ... achei que poderia haver aqui algum não querer, algum não assumir.
R: Sim, eu acho que ele tinha a preocupação em não misturar as duas coisas. Às vezes até tinha problemas com a sua relação com o Serpa porque a Galeria do Luís Serpa estava num espaço que era da SEC e o Luís Serpa não pagava renda e o Calhau via isso com um certo desconforto. Fez imensas propostas para que fosse atribuída uma renda para ele se sentir mais à vontade. Mas realmente o lado institucional tulhiu-lhe ... porque ele tinha muita dificuldade em misturar os dois aspectos (o que é lógico e é saudável). Agora, também é uma verdade que esse lado de acesso a contactos com curadores era importante, mas não acho que o lado institucional dele, pelo menos até à criação do Instituto de Arte Contemporânea, lhe desse acesso assim a grande contacto com curadores. Era uma coisa muito localizada, muito ...
Isso durante o tempo em que esteve na SEC, antes do IAC portanto? Ou seja, a posição que ele até aí ocupava não lhe dava acesso a esse tipo de contactos, é isso?
R: Sim. O Calhau foi pela primeira vez à Bienal de Veneza em 1997, quando foi o Julião.
Sim? Estranho, não tinha ideia.
R: Pois a primeira vez que ele foi foi em 1997. O que é muito surpreendente, não é?
Sim, absolutamente.
R: E ele tinha feito muita força junto da SEC para haver uma representação nacional, durante anos a fio. E dependeu dele, de facto, a possibilidade de terem sido feitas as representações de 1982 (dele e do Julião certamente, na altura). Julião que também teve uma carreira institucional durante 10 anos, não é? De 1976 a 1986. Mas o Julião com uma outra circulação que o Calhau não tinha. O Calhau sempre foi muito mais caseiro.
Pois, uma das questões que eu coloquei ao Julião e que também me fazia confusão foi o facto de em todas as imagens e fotografias dos anos 80, da noite dos anos 80, do Frágil, o Calhau não aparece ... quer dizer, onde é que estava o Calhau? Eu questionei o Julião sobre isto e o Julião respondeu-me que não, que o Calhau estava em casa a trabalhar, ou sozinho a pintar ou a desenhar ... estava em casa. Há uma espécie de auto-exclusão deste mundo ... parece uma figura um bocadinho fora do tempo.
R: Preferia não ir.
Preferia não ir?
R: Sim. Preferia não ir.
Ao mesmo tempo, e tendo em conta estas coisas de que falámos até aqui, e não deixo de deduzir ou de intuir no percurso dele (embora não o tendo conhecido pessoalmente) uma espécie de ... há um lado de descrição natural, de timidez como disse à bocadinho, que provavelmente também exerceria a sua quota parte e que se manifesta muito no trabalho. O trabalho dele não é um trabalho de assimilação fácil ou de fogo de artifício ou de presença imposta.
R: Pois não, não é um trabalho que tenha um cunho forte visual. Um atractivo ...
E é exigente. Exige do espectador uma certa disponibilidade.
R: Pois. Sim, exactamente. Pois eu acho que caracterialmente tem a ver com ele. Como ele era.
Com a personalidade?
R: Sim, sim. O Calhau era uma pessoa muito sombria.
O Julião diz-me que ele era luminoso.
R: Pois, é engraçado ...
Tinha facetas!!!
R: Pois tinha. Ah, ah. Mas, ok, tinha um humor absolutamente esfusiante mas era uma pessoa que podia ser muito sombria. E eu acho que esse sombrio dele tomava conta de muitos dos seus dias. E eu diria que existe uma directa relação (claro que isto pode ser completamente tonto) entre o fechamento de paleta dele e o negro e esse carácter sombrio da sua personalidade.
Sim, porque há um interesse manifesto na noite, nas ambiências nocturnas, na contemplação desses ambientes ...
R: A começar no "Night Works" que se chama logo assim.
Uma coisa quase romântica, não é?
R: É. Umas vezes romântica, outras vezes até mais, até gótica. E isso tinha a ver com o lado sombrio da personalidade dele. Não tenho qualquer dúvida. O Calhau gostava de Thomas Mann, gostava de Peter Handke, detestava ópera italiana, gostava de ópera alemã, isto não é por acaso, não é?
Claro.
R: Isto faz um universo, não é? Gostava imenso daquele escritor alemão negríssimo e dramaturgo, ...
O Heiner Müller?
R: Não. Não me lembro. Aliás, houve uma peça no Nacional, nos anos 90, levada à cena ainda pelo Ricardo Pais e o Calhau foi ver para aí duas vezes. Gostou imenso da peça. Um tipo que se suicidou. São referências sempre muito ...
Sim, o Novalis, também.
R. Pois, pois. O interesse dele pela "Ilha dos Mortos" do Böcklin ... era um interesse que ele tinha. Por exemplo, irritou-me muito aquele Böcklin pintado pelo Calhau ter sido exposto naquela exposição que o Nuno Faria fez. Achei, achei ... isso não se faz. Porque aquilo não era uma obra para ser exposta. O Calhau nunca pintou aquilo para ser exposto. O Calhau pintou aquilo duas vezes, pintou uma vez a acrílico e outra vez a óleo. E quando pintou a óleo foi para se testar, foi para ver se conseguia pintar aquilo a óleo.
Portanto era um exercício, era um desafio a si próprio.
R: Era um exercício. O exercício de repetir uma pintura de que ele gostava muito. Uma coisa completamente privada.
E poderia ter sido outra qualquer mas ele escolheu aquela porque lhe era cara de alguma maneira.
R: Escolheu aquela porque adorava aquela pintura. E o Böcklin fez cinco versões da pintura e ele conhecia muito bem as cinco versões e lembro-me de, em Veneza em 1997 ou 1999, nós estarmos a andar junto à Laguna e a certa altura perdêmo-nos no lado que fica mais perto da estação. Fica virado a San Michele (a ilha dos mortos) e a certa altura a rua não tinha saída, tinha uma ruína e essa ruína tinha uma janela. Da ruína da janela via-se enquadrada a ilha dos mortos ... e o Calhau nessa altura andava com a história do Böcklin e dissemos logo: "Aí que cena e tal ..." foi uma excitação. O Calhau dizia: "Foi daqui que ele pintou, foi daqui". E depois lembro-me que fomos investigar e, de facto, o Böcklin esteve em Veneza antes de pintar a primeira versão da "Ilha dos mortos". E portanto ele ficou convicto de que era mesmo daquele sítio que o Böcklin tinha pintado a coisa. Mas isto era um exercício privado dele.
Mas é ao mesmo tempo um exercício revelador também.
R: Claro que é.
E ainda assim acha que não é uma obra para ser mostrada na exposição, nem naquela nem noutra.
R: Acho, nem naquela nem noutra. Acho que daqui a 30 anos, depois do Calhau ser perfeitamente conhecido, quando forem vasculhar aquilo que eventualmente não é ainda suficientemente conhecido do Calhau ... então talvez se possa incluir na medida em que talvez possa ser significativo para compreender um bocadinho a personalidade dele, mas não numa exposição tão pouco tempo depois da morte e quando a obra é ainda em grande parte desconhecida.
E outro lado engraçado do Calhau, caracterial, e que eu acho que tem a ver com esse lado da sua obra é que o Calhau fazia anos no dia 5 de Fevereiro, e ele nunca comemorava os anos dele, porque o pai dele tinha morrido no dia dos anos dele. E o pai tinha morrido era ele muito miúdo. Salvo erro teria 10 anos, não muitos mais. Portanto, nunca comemorava os anos dele. Ele tinha esse peso. Ficava com um capacete, um peso sempre no dia dos anos dele.
Pois então isto é mais uma achega para este carácter estranho e sombrio, de facto.
A exposição que comissariou na Gulbenkian, em 2001, objectivamente deixou de fora a produção de desenho e porque é que isso aconteceu?
R: Eu explico isso no texto do Catálogo. Bom, eu não queria fazer a exposição naquele espaço da Gulbenkian porque o espaço era pequeno e queria fazer no edifício sede, na sala grande e eventualmente ocupando as outras e aí a ideia era mostrar desenho também. Quando nós percebemos que não era possível fazer isso porque no CAM não tínhamos esse espaço, eu tinha a experiência de uma exposição que tinha feito do Michael Biberstein, onde tinha cometido dois ou três erros curatoriais graves e sabia perfeitamente quais eram. Um deles era ter querido meter o desenho no meio da exposição ... que as pessoas até gostaram de ver o desenho, mas era pouco, não era suficiente e era demais, e então falámos nisso e pensámos em não mostrar desenho nenhum. Mais valia não mostrar desenho nenhum e ficar aberta a possibilidade de mais tarde se realizar uma exposição só com o desenho. E o Calhau atribuía muita importância ao desenho e portanto foi uma decisão completamente consciente dos dois ... prescindimos do desenho e ficava aberta a possibilidade de fazer uma exposição só com a obra sobre papel (coisa que ele achava que seria sempre póstuma e sabia que estava a abrir o campo para que isso quando fosse feito pudesse ser feito com princípio, meio e fim ... e não ser uma pequenina amostra). E o Calhau ... nessa exposição foi muito bom trabalhar com ele, porque foi uma altura muito complicada em que ele achava que não ia chegar à inauguração. E depois até ainda sobreviveu mais um ano. E mesmo com essa sensação ele nunca tentou impor o seu ponto de vista sobre a exposição. Fui sempre eu que tomei as decisões, com ele evidentemente, mas ele nunca tentou impor o seu ponto de vista e portanto havia coisas com que ele concordava mais ou de que ele discordava mais mas ele achou que aquelas opções eram opções que tinham que ser minhas e que ele foi assumindo em cada momento da preparação (que foi uma preparação lenta porque nós trabalhámos muito sobre a exposição e sobre a montagem). E ele esteve lá na montagem, quer dizer, em boa parte da montagem ... nos dias em que conseguia estar, porque havia dias em que não lhe era possível. Quando assim era, tomava eu as decisões sabendo sempre que quando o outro chegasse poderia mudar.
Essa exposição é o primeiro momento em que um público mais abrangente tem acesso ao corpo de trabalho do Calhau ...
R: É, é a primeira exposição antológica que ele fez.
Sim porque a ideia que eu tenho é que as exposições individuais do Calhau (para trás) foram coisas pontuais que foram vistas por grupos reduzidos de amigos ... aliás o Julião diz que ele queria ser artista para ele e para os amigos, não queria nem estava nada interessado em projectar-se para além disso.
R: Eu acho que ele para o fim da vida tinha. Para o fim da vida ele lamentava isso. Mas é verdade, ele sempre se rotulou a si mesmo como uma espécie de artista de artistas. Os artistas conheciam a obra do Calhau e respeitavam a obra do Calhau, mas ele não tinha ambição, achava que o que ele fazia para o público era chato, eram coisas pretas e monocromáticas e que ninguém ligava àquilo. Ele tinha sempre esse peso em cima de si.
Portanto acha que ele tinha a consciência de que estava a produzir coisas que eram importantes e que por isso tinham de ser produzidas (ainda que fossem para um núcleo reduzido de artistas) mas que valia a pena continuar a pintar ainda assim e a produzir obra?
R: Valia a pena continuar, claro, porque ele fazia em primeiro lugar para ele próprio ... isso também era muito claro. Falar de público para o Calhau é um conceito abstracto porque não lhe dizia nada. E o Calhau durante muito tempo (depois de vender muito, quando começou o percurso dele), depois de fazer a exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, saiu da exposição no primeiro dia e foi comprar um Mini, que era um carro caro na altura. Ele contava isto em contra-posição total com o que acontecia depois, na década de 80 e 90 em que o trabalho dele não tinha (salvo duas ou três pessoas) admiradores, nem coleccionadores, não tinha.
Quando a Cândida ofereceu as peças à Gulbenkian verificou-se que era uma doação de 500 peças.
Pois, é um espólio gigante.
R: É um espólio gigante. Claro que nessas 500 peças estão anotações, desenhos, coisas menores que nem são obra, mas de qualquer forma é um espólio enorme que ele tinha com ele.
Pois essa doação, na opinião do Julião, impossibilitou e impossibilitará para o futuro que a obra dele seja uma coisa viva.
R: Essa doação foi uma asneira enorme, concordo inteiramente com o Julião, foi uma asneira enorme porque não há nenhuma instituição (sobretudo uma instituição como a Gulbenkian) que possa assumir aquele espólio e dar-lhe o relevo que um espólio dessa dimensão merece. Para isso teria de ter uma zona de Calhau em instalação permanente, teria de agarrar no Calhau e propôr a uma série de instituições internacionais uma exposição do Calhau, investir nisso, fazer circular. O que eu acho é que neste momento, para a tipologia de obra do Calhau, é o momento maduro para o fazer porque há finalmente uma enorme curiosidade em relação a estas produções próximas do conceptual e do minimal, fora dos grandes eixos. E tentando encontrar o que é que há aqui de realmente relevante no contexto geral deste universo entre o conceptual e o minimal. O levantamento começou a ser feito nos países do leste da Europa, atravessou os modernismos africanos e nós temos os Calhau. Eu acho que neste momento era o momento para o fazer, mas só o pode fazer a Gulbenkian. A questão é que ninguém mais o pode fazer.
Mas porquê?
R: Porque a obra está na Gulbenkian e tem de ser uma posição institucional da Gulbenkian ...
Mas pode começar numa proposta exterior à Gulbenkian, ou não?
R: Pode, mas tem de haver um empenho institucional ... tem a Gulbenkian que assumir que isso é uma tarefa sua, coisa que até agora ainda não aconteceu.
Pois isso era uma das questões que eu também lhe queria pôr: Esta espécie de apagamento que acontece a partir de 2002 (que foi a última exposição do Calhau no Pavilhão Branco, com o Rui Chafes) ...
R: Depois ainda há a exposição que o Calhau tinha preparado com o Julião para o Mário Sequeira ... o Calhau já tinha produzido tudo, eles tinham combinado a instalação mas a Cândida não emprestou as peças e portanto a exposição foi só com as obras do Julião com as paredes onde o Calhau estaria só escritas com o nome dele. Foi a exposição possível para aquele disparate. E depois foi então a do Nuno Faria, que não me lembro em que ano foi.
Terá sido 2006 ou 2007 talvez.
R: Não, deve ter sido 2007.
Mas a da Gulbenkian ou a do Centro Cultural Vila Flor?
R: A da Gulbenkian. A do Centro Cultural Vila Flor nem sei o que é que foi.
Pois, foi uma exposição com um grande catálogo editado pela Assírio, e foi uma outra exposição a partir do espólio doado à Gulbenkian mas com um enfoque estritamente na produção de desenho.
R: Quem é que comissariou?
O Nuno Faria. Uma exposição só de desenho. Uma antologia.
R: Não sabia. Nem tenho esse catálogo, nem soube de nada.
Pois e a minha questão reside aí. Eu considero, de facto, preocupante que desde que o Calhau morreu até agora tivesse havido uma única pessoa ligada ao estudo da obra dele, que foi o Nuno Faria. É estranho que não haja mais pessoas interessadas em investigar, em pensar em exposições que possam incluir o trabalho dele, em acrescentar pensamento crítico à obra.
R: Institucionalmente a Gulbenkian nunca devia ter permitido uma exposição dos desenhos do Calhau no Centro Cultural Vila Flor em Guimarães. Quer dizer, é matar mais uma vez ... mais um prego ... mais uma periferia. Se está longe em Lisboa, está ainda mais longe em Guimarães.
O Delfim não soube, o Julião não soube ... acho que ninguém soube. Foi uma coisa que passou completamente despercebida. Eu só descobri porque vi o catálogo na Biblioteca da Gulbenkian e porque falei brevemente com o Nuno.
R: Desconhecia completamente. Agora, pois acho que o que valia a pena era começar a tentar levar o Calhau para Espanha. Acho que não era difícil convencer o Bartomeu Marí dizendo-lhe assim: "Descobre um artista português que ninguém conhece ... tens aqui uma oportunidade extraordinária.". Ou fazer um protocolo com um bom Museu espanhol. Começar por aí. Não é difícil fazer a ponte com França, não era difícil fazer a ponte para Inglaterra (não evidentemente a Tate porque a Tate não vai apostar num artista como o Fernando Calhau ... não está nesse campeonato, está noutro) mas talvez a Tate Liverpool. E essas circulações começavam a fazer sentido e a mostrar um corpo de uma obra. Quer dizer, um Museu como Serralves, se o Calhau fosse uma artista estrangeiro podia ter feito uma exposição do Calhau como fez de uma série de outros.
Claro, claro. Em relação a isto preocupa-me também o facto de haver uma espécie de apagamento e da pesquisa e daquilo que se pensa e escreve hoje sobre Arte Contemporânea Portuguesa ... foi editado este ano um livro sobre Videoarte e Filme de Ensaio em Portugal, que omite completamente o Calhau (por exemplo).
R: Esse livro está muito mal feito.
Está bem mas ainda assim ... é uma falha grave, gritante.
R: Pois mas quem tinha responsabilidade, quando fez o levantamento em pôr cá fora o material videográfico era o Miguel Wandschneider, que não o faz ... teve tudo na mão para o fazer, devia tê-lo feito e não fez. Como não fez, abre a possibilidade a que coisas tronchas e mal feitas venham a ser publicadas.
Ainda assim apoiada pela Gulbenkian que tinha conhecimento que o Calhau tinha uma produção de filme e vídeo e que era importante ter sido incluída.
R: Não sei, não sei como se processou o apoio ...
Foi claramente um esquecimento e é isso que é mais preocupante.
R: Diga-se que o trabalho de vídeo do Calhau só existe um.
Sim. Foi a reformulação daquela peça "Mar III".
R: Exacto. Porque os outros trabalhos em vídeo do Calhau nunca ninguém os viu, nem o Calhau já se lembrava como é que eram. Porque eles foram filmados em open reel. Open reel eram umas bobines de vídeo como os antigos gravadores de som. Portanto em fita aberta. E já não há máquinas para passar aquilo. Quando foi a exposição do Calhau nós tínhamos as open reel e falámos com outras instituições, falámos com outros Museus para ver se tinham uma máquina que funcionasse para podermos ver ... e não encontrámos em lado nenhum.
Nem é possível transcrever para outros formatos? Claro que não, pois se não é possível visualizar sequer porque não há equipamento de reprodução. E essas coisas foram produzidas na altura quando se montou o Laboratório de Vídeo na SEC, ou não? Foram nesse contexto ou foram peças que ele produziu pessoalmente?
R: Eu acho que foram peças que ele produziu pessoalmente mas é capaz de ter usado o laboratório de vídeo ali na ...
Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém?
R: ... e depois na Alameda. Ele, como o Vítor Belém que era outra pessoa (que não sei se aparece nesse levantamento vídeo-filmográfico)?
Não creio. Não sei.
R: Pois, e era bom ver também o trabalho em filme do Pedro Andrade.
Também não creio que esteja presente. Mas não sei.
R: Pois, são levantamentos mal feitos não é?
Agora só para terminarmos, a última exposição com o Rui Chafes no Pavilhão Branco. Eu não vi a exposição mas aquilo que li aponta para uma espécie de abertura de caminhos novos. Há um espraiamento, sobretudo nos desenhos.
R: Há, há. Nos desenhos e na escultura porque voltavam a aparecer as peças de ferro e néon e os desenhos eram brutais. Uns desenhos incríveis feitos com aquelas barras de pastel de óleo (ou é um carvão oleaginoso, não sei exactamente). Eram assim umas coisas com uma enorme gesticulação, duma brutalidade incrível. Cada desenho daqueles para ele era um sofrimento (físico, que ele já não conseguia ...). E depois uma peça ambiental exterior (que eram os néons cá fora na árvore) e que vinha de uma ideia que ele tinha há muito tempo de fazer uma peça com um néon em árvores, com uns círculos (uma coisa muito antiga, do mesmo tempo do "Cerco", quando foi feito em Óbidos. Na altura ele andava com essa ideia). E chegou a ter uma coisa planeada até para o Museu das Caldas da Rainha.
Essa exposição é uma exposição que realmente abria caminhos mas é curioso ele estar a abrir caminhos sabendo que era um doente terminal. Não era nada uma exposição de fecho de percurso. Eu gostei da exposição, gostei sobretudo do trabalho do Calhau e até acho que o trabalho do Calhau (no diálogo com o do Rui Chafes) ficava favorecido - se pensarmos nesses duos como implicando necessariamente sempre uma certa competitividade, não é? - o trabalho do Calhau era aquele que, de facto, era mais marcante nessa exposição, mais do que o do Rui Chafes.
Inevitavelmente, quando eu penso neste percurso e na biografia dele, penso sempre numa espécie de ideia de destino, ou de predestinação porque ele parece ter tido sempre um lado muito rigoroso e muito ético no cumprimento das questões que lhe estavam predestinadas, de alguma maneira.
R: Sim, sim.
Neste sentido, o que é que acha que, a seguir a esta exposição, poderia vir a acontecer. O que é que faltou fazer ao Calhau?
R: O que eu acho que pode ser feito agora, no futuro: Acho que o que devia ser feito era uma exposição dele fora de Portugal. Isso era o caminho que seria importante fazer e para isso tem de ser a Gulbenkian. A Gulbenkian tem de tomar essa iniciativa. 90% da obra está com eles portanto é natural que tenham de ser eles a tomar a iniciativa.
Mas o que é que acha que a ele lhe faltou fazer? Uma vez que me disse à bocadinho que ele no fim da vida tinha uma certa amargura ou uma certa angústia por não ter tido a visibilidade e por não ter tido o percurso internacional.
R: Tinha, tinha. E a maneira como ele retomou o trabalho quando deixou o IAC é muito reveladora disso. Quando sentiu que a vida se estava a escoar, ele reformou-se e começou desesperadamente a trabalhar e trabalhava afincadamente no percurso artístico dele. Quer dizer, o que lhe faltou, na realidade, foi ter uma carreira artística que ele nunca teve.
Era um pintor de domingo, apesar de não pintar aos domingos.
R: Era um pintor de semana. Faltou-lhe ter uma carreira artística, de facto. Que ele teve no princípio mas depois a SEC, o trabalho, mataram-lhe essa possibilidade. O Julião acusava-o sistematicamente, e com razão, de em 1986 (quando o Julião tinha dado o seu grito do Ipiranga e tinha saído com as suas dificuldades, naturalmente. Ele quando resolveu tomar essa decisão foi um tiro no escuro, ele não sabia o que é que o futuro lhe reservava mas acreditou, e acreditou muito bem, fez muito bem). E o Calhau não teve essa coragem e nunca assumia isso. Dizia sempre: "Não, eu também gosto da actividade da organização de exposições", mas o Calhau organizou muito poucas exposições na sua vida. O Calhau organizou muito poucas exposições ao longo do seu percurso. A maior parte foram institucionais e não lhe davam satisfação.
Sim, em que ele não tinha possibilidade de ter um papel decisório.
R: Pois. A grande pena do Calhau foi ... e ele realmente gostava de fazer exposições e gostava de fazer programação. Gostaria de o ter feito. Tentou fazê-lo várias vezes primeiro na Galeria Nacional de Arte Moderna (que depois ardeu e o facto de ter ardido para o Calhau foi péssimo, devastador para ele pessoal e profissionalmente também ... porque as obras não tinham seguro), depois tentou a Galeria Almada Negreiros (que era ali na Avª da República, no edifício da SEC, no r/c) e ele tentou por várias vezes fazer daquela uma galeria pública, de estado, depois tentou (e era a sua grande esperança) ir para o Centro de Arte Moderna ser o Director Adjunto do Sommer e também não foi possível.
A propósito disso, ainda não falámos da Modus Operandi.
R: Ah pois.
Como é que se juntam as 3 pessoas (para além de que já sei que eram amigos antes) e decidem criar esta empresa?
R: Sim éramos amigos antes e era uma empresa sim. Era exactamente porque não havia condições.
Era uma produtora? Produzia exposições, certo?
R: Era, era.
Mas produziu muito pouca coisa.
R: Produziu. Começou muito antes do tempo. Se fosse talvez formada agora até talvez tivesse condições de crescimento. Na altura não tinha. Foi muito antes de tempo. As Câmaras ainda não estavam para aí viradas.
Aquilo realmente começou porque nós fizemos um projecto em Madrid (ainda na SEC: eu, ele e a Margarida Veiga) ... uma coisa chamada "Lusitânia" que foi um projecto com uma série de exposições no Círculo de Bellas Artes em Madrid (uma exposição de Artes Plásticas, uma de Fotografia, uma de Design e uma de Arquitectura). Organizámos isso e produzimos os catálogos. E quando isso chegou ao fim, pensámos que tínhamos de fazer isto agora em condições, sem as peias do estado e então, tinha ido falar connosco o Presidente da Câmara de Óbidos porque não sabia o que havia de fazer à Bienal de Óbidos que estava num impasse. E nós dissemos: "Então nós fazemos." Constituímos a empresa e fizemos.
Então foi mesmo criada para isso?
R: Sim, foi a primeira razão directa. E fizemos a Bienal de Óbidos, o "Cerco" e foi a primeira bienal toda site-specific que foi feita em Portugal.
Primeira e única, talvez.
R: Talvez. E com o Calhau na altura foi um momento muito intenso. Adorámos fazer o "Cerco".
Sim, foi um projecto super-interessante e marcante no nosso panorama, sem dúvida.
R: Na altura foi, foi. Depois a Modus Operandi continuou (com dificuldades), ainda foi tendo alguns trabalhos mas acabámos por nos separar cada um para seu lado, mais ou menos zangados na altura ... mas reconciliámo-nos depois.
Também gostava de falar consigo sobre a exposição com o Michael Biberstein no Funchal, foi comissariada por si ou é da sua responsabilidade, certo?
R: Foi, foi.
E como é que surge esta ideia de juntar os dois? Eles já tinham intenções de fazer coisas juntos?
R: Foi num jantar. "Vamos fazer uma coisa à volta do monocromatismo". E o Michael Biberstein lembrou-se dos Rolling Stones e disse: "Vamos chamar-lhe 'Paint it Black'!". Era uma coisa à volta do monocromático, a ideia era essa, sendo eles os dois completamente interessados no programa do monocromatismo. E fizemos a exposição e há um catálogo.
Sim, eu já vi. Tem até uma entrevista conduzida por si.
R: É uma conversa. Uma conversa muito bêbeda.
Não se nota nada.
R: Pois foi editada! Era uma coisa completamente catatónica. Uma desgraça. Mas pronto, acabou por ser feito um catálogo e a exposição com muitas dificuldades económicas, o Museu não tinha dinheiro, a Porta 33 também não, foi uma grande complicação.
E para além dessa e da antológica em 2001 fez mais algum projecto com o trabalho do Calhau?
R: Fiz uma exposição ... ajudei-o a fazer, não foi exactamente comissariada, aquela exposição de desenhos que tem aquele livro da Clara Ferreira Alves, o "Passageiro assediado". Fui lá fazer a montagem, porque ele estava muito aflito ... foi quando foi aos Estados Unidos e soube que poderia não ter 6 meses de vida ... por isso é que foram feitas aquelas duas exposições no mesmo ano. Aqueles desenhos são feitos durante a convalescença dele da operação, por isso é que são suturas e cicatrizes e cortes.
Ok, pronto. Quer falar sobre alguma coisa que eu não tenha perguntado e que ache que seja relevante?
R: Sobre o Calhau? Não, acho que não. Acho que não. (...) Eu tenho sempre essa sensação de que eu aprendi a ver Arte com o Calhau, claramente.
Tendo em conta aquilo que me disse inicialmente de que ele tinha esta espécie de dom natural.
R: Havia um dom. Havia um lado de acuidade visual e de atenção natural, mas isso era uma coisa muito treinada também.
Claro, percebe-se que seja assim.
R: Havia um jogo que o Calhau fazia sempre, aliás fazíamos sistematicamente isto. Antes de entrarmos numa exposição dizíamos assim: "Escolhemos duas obras, tu escolhes duas e eu escolho duas.".
Em função de? Obras que vos interessassem?
R: As melhores! Não havia meias tintas. Com ele não era bom para isto ou interessa-me porque ... não, as melhores! As melhores é um critério que não tem discussão, não é? São as melhores! E então, dávamos uma volta e quando nos encontrávamos outra vez à porta: "Então?" e checkávamos sempre.
"As minhas são estas e as tuas ...". E coincidiam frequentemente?
R: Muitas vezes coincidiam.
E se calhar mais para o fim ainda mais ...
R: Talvez, talvez. Mas não quer dizer que as apetências ou os gostos fossem coincidentes sempre. Mas saber olhar, saber montar uma peça, olhar para montar uma peça. O Calhau era muito bom nisso. Destacava-se nisso.
Pois as peças dele, muitas delas e particularmente estas de aço e néon, parece que a sensação que dão é que é como se elas próprias já tivessem isso. É como se a colocação delas no espaço fosse uma mera acção, porque elas transportam em si essa definição do lugar onde pertencem. É como se já estivesse pré-definido nelas quando são feitas ou quando são pensadas.
R. Isso é verdade. Isso é claramente verdade. Há muitos desenhos do Calhau que quando têm o desenho das peças, não têm só o desenho da peças, têm o desenho da peça numa parede. Isso é muito verdade.
Como se a existência delas só fosse possível naquelas condições, em instalação.
R: Sim, isso é muito verdade. Embora curiosamente tenha depois outras peças que admitem várias instalações. A única peça que eu tenho de grandes dimensões do Calhau, é a maior que ele fez. Foi feita para essa exposição da Madeira ... são duas placas de aço e duas peças monocromáticas pretas, tem 5m de comprido por 1,75m de altura e são 4 placas independentes. Elas tanto podem ser expostas todas seguidas, como podem ser expostas em duas paredes separadas, como podem ser expostas em canto. É curioso que no catálogo da exposição na Gulbenkian, a peça está fotografada separada (depois de o Calhau a ter instalado para a fotografia) ... as placas pretas e as de aço. Quando nós depois montámos a exposição, juntámo-las e a peça está em canto. Funciona melhor em canto, mas também pode ser posta numa parede toda em contínuo. Na Madeira estava frente a frente.
Ou seja, a instalação da peça submete-se um bocadinho à categorização de como é que funciona melhor num dado espaço. Mas devem ser poucos os exemplos deste tipo.
R: Muito poucos. As blind dates com o Michael Biberstein também são duplas e podem ser expostas de várias maneiras. De resto não estou a ver mais que tenham essa possibilidade. Ah, o vídeo "Mar III" tem de ser exposto com um ângulo, não quer dizer que tenha de ser em ângulo recto ou maior ou menor.
É variável.
R: É. Por exemplo, quando eu o montei no Museu de Arte Antiga, não sei se viste essa montagem? A Dalila, no último ano que esteve no Museu de arte Antiga, pediu-me para eu fazer uma instalação de algumas obras para o Dia dos Museus. Havia uma instalação de uma peça da Luísa Cunha na Biblioteca (uma peça de som) sobre a própria Biblioteca. Havia uma instalação do Biberstein, das peças que pertencem à Caixa Geral de Depósitos, porque o Biberstein tinha feito umas peças em torno de uma pintura do Vermeer que pertence ao Museu de Arte Antiga ...
Ah já me lembro. Acho que vi essa exposição. Estava no exterior não era, a do Calhau? Não estava no jardim?
R: A do Calhau estava no jardim.
Então eu vi mesmo essa exposição. Lembro-me perfeitamente agora da peça da Luísa Cunha que tinha uma peça de vidro na entrada e a instalação de som na Biblioteca.
R: Exactamente. E depois havia o Croft que estava lá em cima em frente ao Bosch. Uma peça lindíssima do Croft, aliás. E depois havia o Calhau instalado cá fora no jardim.
Nuns painéis não era? Ou numas telas?
R: Sim, numa estrutura montada para o efeito, em ângulo, muito grande, porque ela não tinha dimensões ... era de dimensões variáveis portanto pode ser ampliada ou não. E ali optámos por aquela dimensão. Eu acho que funcionou. Eu acho que funcionava muito bem. Houve puristas que acharam que era um horror. Mas eu acho que não. Não tinha problema nenhum. Acho que ela tinha ali um lado cenográfico muito interessante ... e gostei daquela posição em relação ao rio, em frente ao rio. E aí era um ângulo mais aberto, até por questões técnicas, não é? Quanto mais se fecha, a luz de uma projecção reflecte mais sobre a outra.
Ok. Pronto obrigada.