ARTIGO "ARQUIPÉLAGO. Da insularidade como prática"













vista da exposição "Arquipélago", SNBA, Lisboa, 1985
Foto: © Arquivo Pedro Calapez


“Arquipélago"1

Da insularidade como prática

De entre as noites no Frágil ou no Trumps, os almoços e os jantares, os corredores da ESBAL, alguma agitação ideológica, inúmeras e variadas colaborações criativas, festas privadas, visitas de ateliê, no fundo, de entre a partilha intensa da arte e a partilha intensa da vida, emerge uma geração de artistas. Uma geração que, através de uma estrutura gregária erigida sob a forma de grupo, se afirma fortemente e ajuda a afirmar, em Portugal, um novo território: o Território do Contemporâneo 2

 

Do contexto

Quando olhamos, com a distância que nos confere o tempo, para a década de 80 do século passado, em Portugal (no que à Cultura, em geral, e à Arte, em particular, diz respeito), verificamos ter sido, de facto, uma década consignada a largas e profundas alterações. O processo de transformação social e ideológica, desencadeado pela revolução de 1974, só tem efeitos visíveis, no domínio da arte e da prática artística, a partir do início da década seguinte; até aí, assistia-se a uma sobredeterminação, nas práticas do fazer artístico, dos discursos teóricos e das questões ideológicas, políticas e político-partidárias. Por exaustão, surgem naturalmente no início da década de 80 as primeiras reacções dos artistas, que abandonam as questões da representatividade social e dos discursos ideológicos e passam a interessar-se por trabalhar exclusivamente dentro do domínio da arte e das questões inerentes à prática artística, procurando responder de forma autónoma às suas pulsões individuais. No que respeita à relação com as instituições, mantém-se a recusa face à figura tutelar da Academia e muitos artistas, embora tendo passado pela ESBAL, acabam por não concluir os seus percursos académicos. Com as restantes instituições -- poucas, neste período, para além da Secretaria de Estado da Cultura, Sociedade Nacional de Belas Artes e Fundação Calouste Gulbenkian (ainda que a abertura do Centro de Arte Moderna da FCG, em 1983, tenha, de forma cautelosa, ocupado um espaço até aí vazio) --, a relação era pautada por um cinismo saudável que levava estes artistas a utilizar as instituições sempre que lhes era possível e da forma que lhes era mais conveniente e vantajosa, pelo que, segundo compreendemos, o acesso não seria naturalmente o mais facilitado.

Os processos de legitimação das suas práticas eram veiculados pela forte relação que mantinham entre si e com algumas figuras do meio, suas contemporâneas (que, com eles, partilhavam os mesmos interesses, os mesmos hábitos, a mesma vivência, as mesmas intenções), pela necessidade voraz de consumirem informação, pela urgência de actualidade da sua prática, pela forma sôfrega e viva como partilhavam as suas experiências e as descobertas que ocorriam no decurso do desenvolvimento do seu trabalho, por uma espécie de egoísmo partilhado e cúmplice, enformado por uma atitude irónica e bem-disposta. A tudo isto se pode somar uma alteração na postura de relação com o meio, com o público e com o mercado, pautada por uma atitude afirmativa e independente em relação às gerações anteriores e por uma recusa na identificação de antagonistas ou opositores.

 

Do grupo

No âmbito deste artigo, interessa-nos circunscrever a análise a um colectivo de artistas que, embora tendo recorrido à estratégia grupal como modo de apresentação pública do seu trabalho, nos primeiros anos da sua actividade, cedo revelou intérpretes individuais activos e responsáveis por esta teia de alterações no contexto nacional a que acabámos de fazer referência. Referimo-nos ao conjunto de artistas que ficou vulgarmente arrumado na História da Arte, e no decorrer da exposição homónima, como grupo Arquipélago: Ana Léon, José Pedro Croft, Pedro Calapez, Pedro Cabrita Reis, Rosa Carvalho e Rui Sanches.

Numa entrevista concedida a Alexandre Melo e a João Pinharanda, publicada no Expresso, em 1983, é fixado um momento incomum de afirmação, de contornos algo provocatórios: “Nós somos os melhores!”. Hoje, resulta necessária a análise das circunstâncias e do contexto em que foi proferida esta afirmação. Segundo José Pedro Croft: “‘Nós somos os melhores’ era uma convicção que não passava pela rivalidade. Era uma convicção de que aquilo que nós fazemos é o melhor, porque é o melhor que temos para dar, é o melhor que temos para viver, e portanto não há melhor que isto. Eram termos absolutos, não eram relativos”. Para Ana Léon, “a frase funcionava, porque era preciso provocar e agitar, mas no fundo acabava por ser conscientemente assumida por todos”.

Tendo partilhado os anos de formação na ESBAL (à excepção de Rui Sanches que realiza a sua formação no Goldsmiths College, em Londres, e depois na Yale University, nos EUA), enquanto alunos e membros activos da Associação de Estudantes, com ligações à revista Arte-Opinião3, estes artistas cedo iniciam o seu percurso de colaborações criativas a par de outras actividades de carácter mais mundano, ligadas à frequência de espaços de lazer nocturnos -- caso das discotecas Frágil e Trumps -- onde se iam cruzando com inúmeras outras personalidades da vida cultural lisboeta.

Na opinião de Alexandre Melo, esta dinâmica “resulta de uma grande necessidade, que era sentida, nessa altura, por todas as pessoas mais ou menos da nossa idade, de viver, construir, fazer parte daquilo que se está a fazer”. Melo afirma ainda que, “quando comecei a escrever umas primeiras hipóteses de peças jornalísticas, ou quando começámos a conseguir conquistar espaço para escrever peças jornalísticas ou críticas, sintonizadas com essas novas dinâmicas, uma das nossas principais metodologias de trabalho era identificar grupos de pessoas com os quais poderíamos ter cumplicidades suficientemente fortes em relação a estas motivações e aspirações culturais e artísticas para, conversando e discutindo com eles, escrevendo sobre aquilo que estavam a fazer, podermos começar a configurar a tal nova conjuntura artística e cultural em emergência”..

Neste período, e ao contrário do que aconteceu com outros grupos de artistas (refira-se, a título de exemplo, os que povoaram, sobretudo, a primeira metade do século XX), estas associações apresentadas sob a forma de grupos não eram motivadas por crenças ideológicas, programas conceptuais ou manifestos. O que unia estes artistas em torno das suas práticas era, para além da amizade e de uma natural partilha de afinidades, uma vontade maior de construção e de superação e um genuíno interesse no acompanhamento do trabalho de cada um.

 

Das práticas colectivas

Movidos por uma enorme vontade de fazer e pela convicção profunda da intrínseca qualidade dos seus trabalhos, realizam a primeira exposição de grupo em 1982, no CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra). Aí, a convite de Túlia Saldanha, elaboram um projecto de mostra colectiva em que a relação estética e formal entre as obras é um dado fundamental e em que a montagem se assume, no espaço, como elemento determinante na procura de leitura da exposição como um todo coeso. Nesta primeira exposição, participam Ana Léon, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez e José Pedro Croft, que recorda: “Aí, sim, houve uma grande cumplicidade e um fazer absolutamente extraordinário”. Para Calapez, “a montagem foi feita numa inter-relação e em todas as salas havia peças de todos os artistas. Todos os trabalhos estavam misturados”.

Na sequência desta experiência (verdadeiramente) colectiva, conceberam, em 1983, uma outra exposição para um espaço de uma seguradora, a Galeria Metrópole, em Lisboa. Aí, a preocupação com a montagem foi menos premente, embora as decisões tivessem sido tomadas colectivamente e fosse naturalmente possível, e legítimo, encontrar relações formais ou temáticas entre os vários trabalhos expostos. No âmbito da exposição, foi concebido e editado um catálogo, impresso em serigrafia, que não sendo um documento factual da exposição, existia como objecto artístico autónomo (cada um dos artistas desenhou o retrato de cada um dos colegas e esses desenhos terão sido depois editados em serigrafia e apresentados sob a forma de catálogo/ livro). Para além de Léon, Calapez, Croft e Cabrita Reis, junta-se-lhes, nesta exposição, Rosa Carvalho. E é com este colectivo, agora de cinco elementos, que regressam ao CAPC, em 1984, para uma exposição onde a autonomia das obras e dos percursos de investigação de cada um, são factores cada vez mais destacáveis e evidentes.

Entre as convicções partilhadas, estava o interesse pelo trabalho de outros artistas, mesmo de gerações anteriores e de terrenos de criação conceptualmente tão díspares, como Helena Almeida, Álvaro Lapa, Ernesto de Sousa, ou João Cutileiro e Noronha da Costa. Como recorda Croft, “havia figuras tutelares noutras gerações, e isto é muito engraçado, porque nós não queríamos nada usá-los como modelos, mas eles eram tutelares. Para nós eram luzes. Havia uma série de figuras pelas quais tínhamos a maior admiração intelectual e a maior ternura e empatia”.

Esta empatia e admiração intelectual era manifestada também em relação a artistas da sua geração, de que é exemplo a relação que mantinham com Rui Sanches que, embora tendo estudado fora do país, chegou a colaborar (à distância) com a revista Arte-Opinião. Desta relação, resulta o convite para incorporar o colectivo (perfazendo assim a totalidade dos seis elementos que popularizou a imagem do grupo) naquela que viria a ser talvez a sua colaboração mais visível, mais marcante mas também derradeira: a exposição “Arquipélago”.

 

Da exposição “Arquipélago”

A uma proposta do grupo dirigida à SNBA, em Lisboa, para a elaboração de uma exposição colectiva no espaço do salão, respondeu a instituição positivamente, e com a antecedência necessária, para que pudessem começar a delinear-se os contornos de uma mostra bem sucedida.

Segundo Pedro Calapez, “a vontade era fazer sempre cada vez melhor, cada vez maior, cada vez mais. Começámos em espaços pequeninos e agora queríamos agarrar aquele espaço”. Com a liberdade e apoio que lhes foi concedido pela direcção da SNBA, pretendiam realizar uma exposição onde pudessem dar a ver os seus trabalhos, da forma mais digna e interessante que lhes fosse possível, não tendo que ficar, por isso, reféns de nenhuma ideia de colectivo. Foram, nesse sentido, desenvolvendo o seu trabalho individualmente, encontrando-se, sempre que necessário, para reuniões de preparação da exposição. Rui Sanches recorda que “uma coisa de que falávamos muito era de uma ideia de profissionalismo” e Croft acrescenta: “Foi uma exposição toda preparada com muito cuidado, com fund raising, patrocínios e tudo”.

Concordando com João Pinharanda quando afirma que “a clareza de uma proposta pode começar logo pela escolha de um título”, debruçamo-nos sobre a escolha do substantivo “Arquipélago”, cuja significação é amplamente explanada nos textos do catálogo, nomeadamente na citação de um outro texto de Cabrita Reis, que Fernando de Azevedo coloca em epígrafe do seu, e que diz: “Na espessura da incomunicabilidade que nos une/ estamos sempre em afastamento permanente/ para bem próximas ilhas/ povoadas por sinais de alteridade,/ essência de uma certa história de cada um”. 4

“Desde o início, assumimos plenamente a singularidade do trabalho de cada um -- o que se reflecte, aliás, no título que demos à exposição”, afirma Rosa Carvalho e a análise de Bernardo Pinto de Almeida (também num texto incluído no catálogo): “A obra destes artistas, mais do que na singularidade das suas trajectórias e ritmos individuais, configura-se aqui, e sobretudo, no exprimir desse sentido de pluralidade e de contingência aventurosa, ao instaurar um espaço de entendimento e visão da obra de arte na sua essencial e irradiante diferença”.

Esta era portanto a premissa inicial que balizava a concepção de toda a exposição, isto é, justamente, a ausência de premissas que pudessem uniformizar a leitura do todo, bem como a criação das obras, por forma a que cada artista pudesse apresentar-se individualmente mas na possibilidade de vizinhança e diálogo com os outros. Neste sentido, e também porque pretendiam conferir ao espaço a dignidade que este lhes merecia, decidiram usar o salão completamente vazio partindo para um tipo de display, de alguma forma novo no contexto das exposições colectivas até aí apresentadas na SNBA. Isso permitia não só uma visualização total da exposição desde a entrada (excluindo qualquer percurso pré-determinado de leitura), como possibilitava múltiplos cruzamentos e linhas de tensão entre as peças, permitindo-lhes, no entanto, existir individualmente nos seus locais de familiaridade preferencial.

A exposição fez-se acompanhar pela edição de um catálogo (que pouco a documenta mas cujo contributo teórico -- sobretudo o texto de Maria Filomena Molder -- é francamente relevante para a compreensão tanto dos percursos de investigação que motivavam, à época, cada um destes artistas, como da rede de relações que, entre as suas obras, se pudessem eventualmente estabelecer). Alexandre Melo recorda que “havia uma noção, que aliás se manteve em muitos desses artistas, de ocupação total do espaço” e, neste sentido, parece-nos relevante realçar, aqui, a tendência monumental das suas intervenções, bem como uma certa relação genésica com as temáticas do espaço arquitectónico, do espaço físico e material, do espaço da existência humana ou do espaço geográfico e matricial de uma civilização que nos é a todos comum.

 

Do que ficou

À inauguração da exposição (a 28 de Novembro de 1985) terá acorrido, em peso, um público cúmplice e motivado, como recorda José Pedro Croft: “Todas as exposições que nós tínhamos tido até aí, e que culminaram com a exposição ‘Arquipélago’, eram uma festa. Centenas de pessoas na inauguração, como hoje em dia não há... Eram realmente acontecimentos. Vivíamos momentos de euforia”.

A par de um Porto servido todas as tardes aos visitantes, no decorrer da exposição, outros eram os motivos para juntar o público e a crítica em torno do evento. À reconhecida maturidade da proposta (no que à qualidade das obras apresentadas dizia respeito) aliava-se o carácter ambicioso e afirmativo do projecto no seu todo. Rui Sanches recorda que “algumas pessoas combinaram visitas acompanhadas (por exemplo, Julião Sarmento, levou lá o Juan Muñoz, a Margarida Veiga e mais algumas pessoas da SEC). Uma série de pessoas, que na altura não conhecia, quis falar connosco. Houve, de facto, uma atenção grande de pessoas de outras gerações e de pessoas ligadas às instituições”.

A exposição teve, de facto, um impacto real nas carreiras destes artistas, que, na sua maioria, começou a trabalhar com galerias, podendo ver assim reforçada a sua relação com o mercado. Também ao nível dos seus percursos criativos, este momento, a par de outros, é por eles identificado como relevante e estruturante das suas práticas (nalguns casos, o trabalho desenvolvido especificamente para o contexto da exposição permitiu-lhes testar, abrir novos caminhos ou abandonar outros). E, de acordo com as palavras de Croft, podemos seguramente afirmar que, em todos eles, se manifestava já a génese daquilo que viria a constituir o âmago da sua obra: “Acho que qualquer um de nós tinha um sentido de vida que depois veio a ser confirmado, que é o sítio onde cada um de nós está”.

Da prática artística surge naturalmente a necessidade de confrontação e todas as gerações de artistas tiveram e têm a necessidade de ver testado o seu trabalho publicamente, por relação ou confronto com o trabalho de outros. A exposição “Arquipélago” resultou, como vimos, do culminar de uma série de outras iniciativas colectivas mas, pelas circunstâncias que a envolveram, destacou-se indelevelmente no panorama da História da Arte Contemporânea Portuguesa, por ter ajudado a fixar um novo paradigma, acente num circuito iminentemente cosmopolita e em práticas consentâneas com as premissas da pós-modernidade. Como recorda José Pedro Croft: “Aquela exposição foi assim como uma sala de aeroporto onde nós convivemos e depois cada um foi apanhando o avião para o seu destino, para a sua casa. Num determinado momento, a casa foi aquela, uma casa comum”.

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1. o grego Archi, principal, e pélagos, mar. Antigo nome por que eram conhecidas, no mar Egeu, as numerosas ilhas que fazem parte do Mediterrâneo Oriental (à época, entre a península dos Balcãs, a Ásia Menor e Creta). Tornou-se posteriormente sinónimo de “grupo de ilhas”. in Grande Enciclopedia Portuguesa e Brasileira, vol III, Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa (pp.294-295)

2. Expressão pedida de empréstimo a Alexandre Melo, recorrente em alguns dos seu textos da época, nomeadamente: “Anos 80: o contemporâneo como território” in Expresso, Lisboa, 07 Dez. 1985; “Anos 80” in Arte Contemporânea Portuguesa, edição de autor, Lisboa, 1986 (pp.27-38) -- aqui com João Pinharanda

3. Revista editada pela Associação de Estudantes, sob a direcção de Pedro Cabrita Reis, na qual colaboraram esporadicamente José Pedro Croft, Pedro Calapez, Rui Sanches, Rosa Carvalho e Ana Léon

4Reis, Pedro Cabrita, “Até ao Regresso” in Catálogo da Instalação na Galeria Diferença, Outubro 1981


ANA ANACLETO

Junho 2010

 


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AGRADECIMENTOS:

Alexandre Melo

Ana Léon

Bruno Marchand

José Pedro Croft

Pedro Cabrita Reis

Pedro Calapez

Rosa Carvalho

Rui Sanches