FERNANDO CALHAU (1948-2002)

La Manière Noir1

Fernando Calhau
Colecção CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian
Foto: Cortesia CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian


Sonhar com uma pintura. Visualizar (em sonho), e com o mais apurado detalhe, as suas características formais. Registá-la em esquema, por via do desenho. Projectá-la com o recurso à memória. Respeitar as marcações. Seguir o plano traçado. Executar. Saber exactamente, e sempre, o lugar que ela poderia ocupar. Desenhar todos os dias. A preto e branco. Procurar adicionar ainda mais negro ao negro. Adivinhar a noite e persegui-la arduamente. Ver Arte. Saber ver. Descodificar a Pintura. Procurar inscrever-se na sua história. Rir muito, quase todos os dias. Sobretudo de si.

Eis uma figura de carácter discreto e aprumo cerebral, de contornos assumidamente contraditórios, que na memória de alguns ficou, até à data, como o mais interessante artista português contemporâneo.

 

O moço artista2

Lisboa, final dos anos 60. Fernando Calhau inicia os seus estudos superiores de Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Aí conhece alguns dos que viriam a ser os seus amigos mais próximos, a quem começa por impressionar com uma invulgar curiosidade visual e um, à época, elevado know how técnico. Luís Serpa, seu colega no primeiro ano, recorda que "ele vinha já como O ARTISTA, e não como o aprendiz de artista."

De facto, Fernando Calhau, por influência directa do pai (designer gráfico), havia iniciado, algum tempo antes, as suas investigações visuais e técnicas ao nível da gravura, na Cooperativa Gravura em Lisboa. É aí que começa a desenvolver as coordenadas que viriam a definir o corpo matricial do seu trabalho: a questão da serialidade, do apagamento cromático, da reprodutibilidade mecânica amplamente devedora de uma execução necessariamente manual, da decomposição espácio-temporal através da reprodução fotográfica, sempre aliadas a um prazer implícito no fazer e no tempo de duração desse fazer.

Aos excessos próprios da época vem juntar-se uma curiosidade natural pela descoberta de novos estímulos visuais. Julião Sarmento, aponta que "no fundo, foi o pai do Calhau que nos mostrou que existia a Arte Americana, porque tinha as revistas de design e de vez em quando apareciam umas coisas do Andy Warhol, e nós aí começámos a juntar dois e dois (...) e começámos a ir à Embaixada Americana onde passávamos tardes a ver a Art in America e a Artforum.".

A precocidade é portanto, no percurso de Fernando Calhau, uma tónica. É nestes anos, e ainda enquanto estudante, que realiza as suas primeiras exposições individuais: "Gravuras Brancas" na Galeria Gravura, Lisboa (1968); "Pintura", na Galeria Quadrante, Lisboa (1970), "Pintura", na Galeria Judite da Cruz, Lisboa (1972) e "Desenhos" na Galeria de Arte Moderna, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa (1973), valendo-lhe o reconhecimento generalizado e unânime dos mais distintos quadrantes da crítica nacional. Segundo Delfim Sardo: "o Ernesto de Sousa e o José Augusto França, o Rui Mário Gonçalves, o Fernando Pernes, o próprio Fernando Azevedo. Todos eles tinham um apreço enorme pela obra do Calhau, curiosamente. (...) provavelmente a obra do Calhau reunia características que agradavam a ambos, por motivos diversos."

Também do mercado não se podia queixar Fernando Calhau: "Antes do 25 de Abril houve um mercado muito forte. Tão forte que eu chegava a vender quadros em exposições de outros artistas a que ia. Havia pessoas que quase me impingiam os cheques para comprarem quadros."

A sua pintura, de recursos mínimos, em que a opção por uma forma definida (o quadrado, maioritariamente) e a redução da paleta a gradações tonais entre branco e negro, parecia ir ao encontro de um público de gosto moderno e com clara consciência do elevado potencial de valorização da arte moderna. E acrescenta Delfim Sardo: "o Calhau (...) depois de fazer a exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, saiu da exposição, no primeiro dia, e foi comprar um Mini, que era um carro caro na altura!".

No ano de 1973 coincidem o final do curso de Pintura (após a conclusão da série de pinturas verdes que o tinham levado ao que apontava, para si, como o esgotamento da pintura)  e a atribuição, pela Fundação Calouste Gulbenkian, de uma bolsa para a frequência de estudos de pós-graduação na Slade School of Fine Art em Londres, que visaria o aprofundar dos estudos de gravura com Bartolomeu Cid dos Santos, onde permanecerá até 1975. Uma célebre fotografia do grupo de alunos e professores da Slade School, onde se destacam Fernando Calhau e Bartolomeu Cid dos Santos empunhando um cartaz onde se lê "Army Revolt in Portugal", documenta a forma como em 1974, e à distância, era vivido o facto da Revolução.

Regressado a Portugal em 1975, apresenta, numa exposição na Fundação Calouste Gulbenkian o resultado do trabalho realizado em Londres: um conjunto de obras que resultam da combinação de diversas técnicas de gravura, entre elas a foto-gravura e o ozalide, e em que o interesse pelas relações entre espaço e tempo, entre o olhar, o ponto de vista e o tempo da duração desse olhar, no fundo questões de percepção, se manifestam agora como a tónica dominante da sua investigação. É também nesta fase, e ainda durante a estadia em Londres, que começa a usar o filme Super 8 como mais uma ferramenta para a investigação que perseguia. O plano fixo, a duração do olhar determinada pela exacta duração das bobines, o ponto de vista que recusa o jogo hierárquico da paisagem, ou, numa obra um pouco atípica mas muito sintomática ("Destruição", 1975), a anulação total do lugar e da figura do autor através da imagem metafórica da marca da mão que é apagada justamente por uma marca produzida por essa mão, dando origem a uma imagem monocromática de um negro total, que cintila bruscamente no ecrã até acabar a bobine. Em 1976 escrevia Ernesto de Sousa: "Nos últimos tempos, as experiências de Calhau inflectem-se no sentido de uma inquietação conceptual, com utilização da imagem neutra e referências ao-gesto-que-aponta. (...) O vazio e a indiferença (neutralidade) de Calhau inscrever-se-iam numa vasta operação (...) cujo fim parabólico é fazer ver e escutar."

Não podemos deixar de estar de acordo com Ernesto de Sousa neste ponto, e é justamente aqui que reside parte do nosso interesse pela obra deste autor. De facto, Fernando Calhau procurou, nestas obras, como já nas gravuras brancas ou nas pinturas monocromáticas anteriores, atrasar, ou melhor, abrandar o ritmo do olhar, do seu olhar e, necessariamente, o do nosso. São obras exigentes, que, implicando um longo tempo de permanência, requerem do espectador qualidades de observação que vão para além da análise estética.

 

Um emprego

Com a crise petrolífera de 1973, verificou-se em Portugal uma retracção no mercado que veio a acentuar-se significativamente, no ano seguinte, com o 25 de Abril. Fernando Calhau, ausente em Londres durante este período, encontra na chegada a Lisboa, e ao contrário do que acontecera até aí, sérias dificuldades em veicular a circulação comercial do seu trabalho.

Em 1976 recebe um convite para integrar a equipa da Secretaria de Estado da Cultura (sendo, à época, director geral Eduardo Prado Coelho e secretário de estado David Mourão Ferreira). Encontra aí um terreno livre para trabalhar numa outra área que lhe trazia muita satisfação: a concepção e organização de exposições. Diz: "comecei a tentar fazer alguma coisa - mais exactamente a tentar preparar a Lis, que era uma exposição internacional de desenho, mas que pretendia, mais tarde, passar a bienal de Lisboa." Projecto entusiasmante, absolutamente pertinente, mas simultaneamente devastador (com o incêndio ocorrido em 1981, que destruiu todo o espaço da Galeria Nacional de Belém, todo o espólio e equipamento aí existentes e todas as obras já seleccionadas para a segunda Lis).

Os projectos foram-se somando mas, diz ainda: "depois, foi-se de situações de verificação de impossibilidade em verificação de impossibilidade. (...) Começou a ver-se que a Cultura era mesmo um penacho no chapéu do governo e que não valia a pena."

Vai, apesar de tudo, consolidando a sua carreira na Secretaria de Estado até ser convidado, em 1996 para dirigir o, recentemente criado, Instituto de Arte Contemporânea, que é, em grande medida, um projecto seu e que surge da necessidade de criação de uma estrutura ligeira, desburocratizada e relativamente autónoma que veiculasse, por um lado, o apoio à criação (através do apoio directo aos criadores ou à produção de exposições) e, por outro, o apoio à divulgação e à criação de públicos (através de programas de internacionalização e de descentralização).

A sua carreira institucional termina em 2001, ao fim de 25 anos, em que grande parte do seu tempo criativo foi sendo partilhado com o tempo criativo de outros, mas em que, embora com dúvidas, persistiu em nunca cessar definitivamente a sua actividade artística, tendo, apesar de tudo, tido períodos de grande abrandamento criativo.

Na sua obra trabalhava sobretudo à noite, no seu atelier, em casa.

 

A cápsula da noite

 É na sequência das suas investigações sobre o espaço e o tempo que surge em 1978 uma nova série de trabalhos, ainda de tipologia fotográfica mas com contornos bastante distintos, os "Night Works". É aqui introduzida, pela primeira vez, uma dimensão de envolvência global, de súmula espácio-temporal produzida a partir de longas exposições nocturnas que anulam o horizonte e a presença das formas para conferirem às imagens apenas duas dimensões de contraste (o branco e o negro). A estas eram somadas imagens monocromáticas negras ou azuis e, em alguns casos, e também pela primeira vez, palavras em néon (ou melhor, em árgon, que Calhau considerava possuir uma intensidade lumínica e cromática muito próximas do luar).

Estas imagens servem agora uma ideia que ultrapassa a dimensão conceptual para se inscrever, pela primeira vez no seu percurso, num território de contornos assumidamente simbólicos, abrindo-o a uma esfera romântica. Segundo Delfim Sardo: "Umas vezes romântica, outras vezes até mais, até gótica. E isso tinha a ver com o lado sombrio da personalidade dele. Não tenho qualquer dúvida." Para Julião Sarmento: "Não eram bem poéticos, eram mais desesperados do que poéticos ... (...) isso vem da solidão do Calhau (até porque estas coisas não nascem por acaso) e da maneira como a vida dele se estruturava e como ele a via esboroar-se, e no poço de contradições que existia dentro dele, que era se por um lado tinha a perfeita noção e a vontade imperativa de ser um artista extraordinário, por outro lado ... ".

Os "Night Works" abrem assim um território novo de possibilidades, que dão origem, já nos anos 80, por um lado a uma nova série de pinturas monocromáticas configuradas (shaped canvases), e por outro à utilização das palavras em árgon associadas agora a enormes placas de ferro que aparecem como resposta a uma espécie de fascínio sensorial pelo peso e pela ideia espacial de peso.

Fernando Calhau era dotado de uma capacidade extraordinária para observar, para ver as coisas e simultaneamente o lugar das coisas, era exímio na forma de ver arte e era também exímio na forma de instalar obras de arte. "(...) há pessoas assim, que ouvem compulsivamente, por entre o silêncio e os pequenos ruídos, outras vêem compulsivamente. Fazem analogias visuais a velocidades estonteantes, à velocidade de uma inteligência muito rápida, como se fossem sensíveis a um eco visual das coisas que são, normalmente só coisas."3

Olhamos para estas obras e percebemos isso imediatamente. São aquilo que são e ainda o lugar onde estão. Vivem num constante namoro com a arquitectura, com o espaço interior, definido e confinado. É como se  transportassem sempre, em si, essa definição do lugar onde pertencem e isso deve-se, em nosso entender, justamente à forma como Fernando Calhau praticava e exercitava uma espécie de compulsão pela suspensão do instante, do tempo e pela suspensão do espaço, como que em resposta a uma necessidade de controlo tenso desse mesmo espaço.

 

O imperativo da Pintura

Fernando Calhau não tinha, no entanto, de si a imagem de um Artista, em sentido lato. Dizia-se assumidamente um Pintor.  Na opinião de Delfim Sardo: "o Calhau olhava sempre para o seu trabalho como um trabalho que se situava sempre na tradição da Pintura. Era daí que ele vinha. E portanto, o trabalho dele era um prolongamento dos problemas da prática da pintura tal como ela vinha desde o Renascimento."

Era, de facto na tradição da Pintura que Calhau pretendia inscrever-se mas quando usava a pintura, usava-a seguindo a metodologia comum ao trabalho com outros media: projectava-a (normalmente através de um desenho esquemático preparatório) e depois executava-a, simplesmente. À secura deste processo era aliada uma ferramenta operativa de avaliação que definia, uma vez a pintura pronta, se funcionava ou não funcionava, isto é, se cumpria os requisitos iniciais que presidiram à sua projecção como pintura.

Em 1995, numa exposição a duo com Michael Biberstein na Galeria Porta 33 e na Fortaleza de S. Tiago, no Funchal, com o título "Paint it Black", Fernando Calhau apresenta pela primeira vez uma série de pinturas que se podem inscrever num outro compartimento da tradição da Pintura. São pinturas de "pergunta/ resposta", isto é, são pinturas que não respeitam um projecto prévio, e que se vão construindo sobre a tela à medida que vão surgindo questões e decisões para tomar. Confrontado com esta alteração Calhau refere: "mas agora é muito mais divertido, porque tenho muitos mais aspectos a requerer atenção. Não estou a construir uma superfície, estou a construir outra coisa, a tomar dimensão, porque a luz aparece de vários pontos da pintura e torna-se totalmente irrelevante. Nunca sei como vai terminar, como se vai desenvolver. Portanto, tenho que julgar em cada momento, fazendo. E isso é divertido."

São também pinturas que voltam a aproximar-se muito de uma estética romântica, em que o negro assume a sua qualidade simbólica de desconhecido e se desdobra em valores tonais ligeiramente mais claros conferindo-lhes nuances muito atmosféricas e, de certo modo, até paisagísticas. Não são representações, mas são evocações. Voltam a transportar consigo uma memória da noite.

Numa série de outras pinturas apresentadas numa exposição na Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, em 2001, Fernando Calhau volta a perseguir estas questões. Mas aqui, recorrendo exclusivamente ao formato quadrado, coloca em confronto, de uma forma muito evidente, duas questões fundamentais na sua prática: uma tradição minimalista de execução industrial (que rejeita a manualidade) em oposição justamente à proficiência e ao rigor manual próprios do seu fazer. Tudo, na observação destas pinturas, é descoberta. Quanto mais detalhe conseguimos discernir, mais necessidade temos de investir na observação desse detalhe.

No texto publicado, a este propósito, no catálogo, João Miguel Fernandes Jorge afirma que "Uma tempestade esconde sempre a alma dessa tempestade." São, de facto obras duras, de uma enorme secura, mas que, à semelhança da tempestade de que fala João Miguel Fernandes Jorge, encerram justamente em si, em cada detalhe, a alma que lhes preside.

 

A constância do Desenho

Num texto escrito por Rui Chafes, a propósito de um ciclo de mesas redondas programadas por Nuno Faria no âmbito da exposição que comissariou para o CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian, em 2006, e colocando-se no ponto de vista de um artista que observa e analisa a obra de um outro artista, diz Rui Chafes: "Para mim, a ideia de desenho parte de um local, do nosso ponto de partida: 'ser é estar num ponto'."

O desenho aparece na obra de Fernando Calhau como uma espécie de respiração, de impulso respiratório ritmado, ora cambiante ora repetitivo. Atravessa todo o seu percurso e tem um lugar maior no corpo da totalidade da sua produção. Ora é verbo, ora substantivo ... ora é chão preparatório para a edificação da obra, ora é a obra ela mesma.

No espólio pertencente à Colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian encontram-se desenhos datados entre 1965 e 2002 (precisamente o período de tempo que baliza aquilo que consideramos, no caso de Fernando Calhau, como carreira). Através destas obras pode confirmar-se, por um lado, o muitíssimo dotado desenhador que Calhau foi e o quanto a disciplina se constituía para si como ferramenta operativa de pensamento, e por outro, o enorme espaço de liberdade que ocupou no seu percurso, uma vez que encontramos ali também inúmeros registos soltos, desgarrados, próximos de exercícios de treino de mão, que nos inquietam porque acrescentam uma dimensão de intimidade à qual provavelmente não precisaríamos de ter acesso.

Também o seu desenho pensa a Pintura, ou é também através dele que Calhau pensa a Pintura. Segundo Vítor da Silva "fala-nos da memória da pintura, da sua possibilidade e do seu esquecimento, e sobretudo da sua exigência e 'sobrevivência'.". Mas é também retórico e auto-reflexivo na medida em que, ao contrário da Pintura que ilude o espectador, este se mostra tal como é, se desvela e denuncia os processos inerentes à sua própria construção. Entrevem-se-lhe as camadas, a sobreposição de linhas, a sequência e orientação dos traçados mas sobretudo, o tempo da sua execução.

 

O maior de todos os imperativos

"Trabalhei um ano e meio no atelier de quem tinha seis meses de vida para viver a sua obra: o tempo, a vida, o limite da matéria, o preto com todas as suas nuances... Uma obra grave de uma pessoa dotada de um humor feroz capaz de perturbar a sensibilidade dos mais pudicos." escreve Diogo Pimentão em resposta a um desafio que lhe lançámos no decorrer da preparação deste artigo e que em muito nos ajudou a concluir que, no cumprimento do seu desígnio lento, faltou a Fernando Calhau, sobretudo, tempo. Mas que mesmo sem conseguir cumprir na totalidade o seu plano, nunca se afastou de um programa ético, a todos os títulos recomendável:

 "A coerência conceptual, que não haja desvios aos princípios com que me tenho orientado, ao meu programa - que as pinturas tenham uma continuidade, que funcionem face a um espectador, que façam sentido dentro da série, que não sejam a mais, que reafirmem o que lhes está para trás. (...) há algumas coisas que para mim são importantes. A coerência é importante, embora não seja, hoje em dia, muito valorizada. A lucidez é muito importante. Não se perder de vista, ser capaz de analisar. A honestidade de trabalho é fundamental - não suporto a desonestidade criativa. Estes são os princípios que me interessam. (...) Estou preso a uma geração que tinha os pés na terra. Preso à coerência. (...) Trabalhamos todos para uma imanência, para um cruzamento que há-de acontecer. (...) É preciso trabalhar sempre sem nada na manga e sempre sem rede."

Embora lhe tivéssemos seguido bem de perto o percurso, não chegámos a conhecer Fernando Calhau, mas gostávamos de o ter conhecido.

 

Ana Anacleto

 

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1 Processo inventado no século XVII por Ludwig Van Siegen também conhecido como método de reprodução, que permitia a cópia fiel dos valores da pintura original. Tendo caído em desuso devido à proliferação de outras técnicas, foi retomada por inúmeros artistas contemporâneos que apreciavam o seu carácter rigoroso e moroso mas extremamente rico em termos de nuances e valores. (...) Maneira negra é, tal como o nome indica, uma gravura que parte do negro, passando por todos os valores até ao branco. O princípio da sua técnica consiste em provocar sobre o cofre uma espécie de rede fina e compacta, comportada por pequenos pontos ou furos, de maneira tal, que fazendo uma prova de uma chapa assim tratada, essa prova será negra. O caminho até ao branco implica um longo e demorado processo.

Jorge, Alice / Gabriel, Maria, in Técnicas de Gravura Artística - Colecção Estudos de Arte, Livros Horizonte, Lisboa, 1986, pp. 56-57

 2 França, José Augusto, "Fernando Calhau", in Colóquio Artes, s.2, a.15, nº13, Lisboa, Junho 1973, p.11

 3 Sardo, Delfim, "Fernando Calhau. A Polaroid", in suplemento do jornal Público de homenagem a Fernando Calhau, Julho 2002

 

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AGRADECIMENTOS:

Bruno Marchand

Delfim Sardo

Diogo Pimentão

Luís Serpa

Nuno Faria

Michael Biberstein

Isabel Carlos

 e muito especialmente a:

Julião Sarmento


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IMAGENS:

Fernando Calhau com a obra "Camisa" do colectivo Silva Tavares & Cia. Lda. (Fernando Calhau e Julião Sarmento), ESBAL, Maio 1969

Foto: Cortesia Arquivo Julião Sarmento



"Materialização de um quadrado imaginário", 1974 (maquete)
Fotografia e tinta da china sobre papel fotográfico
4x (8,5 x 12 cm)
Colecção Fundação de Serralves
Foto: Cortesia Museu de Arte Contemporânea de Serralves

3 stills do filme "Destruição", 1975
filme Super 8mm, transcrito para DVD, cor, sem som, 3'17''19F
Colecção CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian
Foto: Cortesia CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian



#68 "Night Works", 1978
fotografia a preto e branco
77 x 517 cm [80 x (17 x 23 cm)]
Colecção CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian
Foto: Cortesia CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian


Sem título (Razão/ Ratio), 1991
Ferro e néon
Dimensões variáveis
Colecção Julião Sarmento, em depósito na Fundação de Serralves (fotografia da instalação na Galeria Luís Serpa)
Foto: Cortesia Arquivo Julião Sarmento


#126, 1998
Acrílico sobre tela
190 x 190 cm
Colecção Julião Sarmento
Foto: Cortesia Arquivo Julião Sarmento


#165, 1999
Carvão sobre papel
64,5 x 94 cm
Colecção CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian
Foto: Cortesia CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian


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BIBLIOGRAFIA:

Alves, Clara Ferreira e Calhau, Fernando

Passageiro Assediado, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001


Caldas, Manuel Castro

 "O Quadro e a Moldura [notas sobre Fernando Calhau]" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 25-30


Calhau, Fernando

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Chafes, Rui

"Ser é estar num ponto" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 31-35


de Sousa, Ernesto

in Fernando Calhau, Fundação Calouste Gulbenkian - Galeria de Exposições Temporárias, Lisboa, Agosto 1975, pp.3-4


de Sousa, Ernesto

"Fernando Calhau e o vazio como angústia", in Colóquio Artes, s.2, a.18, nº27, Lisboa, Abril 1976, pp. 31-39


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Faria, Nuno

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Faria, Nuno

in Convocação I e II (Modo Menor e Modo Maior). Obras no Acervo do CAMJAP, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, pp. 10-13, p.17, 21, 31, 97, 121, 129, 135, 139, 157, 177, 193, 207, 221, 233, 253, 259


Faria, Nuno

"Teoria das Excepções [da escuta]" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 93-96


Fernandes, João (coord.)

Perspectiva: Alternativa Zero, Fundação de Serralves, Porto, 1997


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Jorge, João Miguel Fernandes

"Fernando Calhau" in Abstract & Tartarugas, Relógio d'Água, Lisboa, 1995, pp.192 - 194


Jorge, João Miguel Fernandes

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"Convocação I e II. A propósito da arte de Fernando Calhau" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 63-69


Maia, Tomás

"O Gesto da Arte [O segredo do artista, 2]" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 71-91


Michaud, Philippe-Alain

"Quase Monocromo" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 37-46


Molder, Jorge

in Convocação I e II (Modo Menor e Modo Maior). Obras no Acervo do CAMJAP, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, pp. 7-9


Molder, Jorge

"Abertura" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp.7-8


Molder, Jorge

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"Fernando Calhau" in Transfert - Galeria Lino António (Escola António Arroio), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 1-2


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in A fotografia como arte, a arte como fotografia, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1979, pp. 10-11


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in Calhau, Galeria Gravura, Lisboa, 1968, p.1


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Sardo, Delfim

"O mapa da noite é como o mapa do mar. Tópicos sobre o trabalho de Fernando Calhau a propósito desta exposição" inWork in progress, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, pp. 26-30


Sardo, Delfim / Calhau, Fernando

"Sem rede. Uma conversa com Fernando Calhau, em quatro noites de Fevereiro de 2001" in Work in progress, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, pp. 49-237


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"Fernando Calhau. A Polaroid", in suplemento do jornal Público de homenagem a Fernando Calhau, Julho 2002


Sardo, Delfim

"A pequena noite. 5 propostas para olhar a obra de Fernando Calhau" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 49-62


Silva, Vítor da

"ET SIC IN INFINITUM. O desenho de Fernando Calhau" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 11-23


Vidal, Carlos

"Fernando Calhau" in Sinais, Galeria Pedro Oliveira/ Roma e Pavia, Porto, Junho 1990, pp.3-5


von Drathen, Doris

"Cicatrizes na sombra" in Work in progress, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, pp. 36-41


"Calhau rosa", in O Independente, Lisboa, 19 Abril 1996, p.57


Calhau, Galeria Judite da Cruz, Lisboa, 1972


Fernando Calhau, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980 (obra publicada por ocasião da exposição no âmbito da 11ªBienal de Paris, 1980)


Modulo: a new selection, Modulo - Centro difusor de arte, Porto, 1977 (obra publicada no âmbito da Cologne Art Fair, em Colónia, Alemanha, 1977)


Abstracção hoje, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1975


O desejo do desenho, Casa da Cerca - Câmara Municipal de Almada, Câmara Municipal de Almada, Almada, 1995


Sinfonia em branco: pintura, escultura, fotografia, Convento dos Capuchos, Almada, 1986


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Julião Sarmento

Artista

(conversa sobre Fernando Calhau. Agosto 2009)

 

Pedia-lhe que situasse a altura em que conheceu o Calhau, lembra-se?

R: Lembro-me, lembro-me bem, enfim vagamente ... Foi quando eu fui para a Faculdade (da minha entrada na Faculdade é que eu não me lembro). Isto por uma razão muito simples: eu entrei antes da altura normal das pessoas ... porque no meu tempo o sistema de escolaridade era a escola primária que tinha quatro anos (primeira, segunda, terceira e quarta), depois havia o liceu que tinha sete anos (primeiro, segundo, terceiro, quarto, por aí até ao sétimo), e depois havia a Faculdade, pronto. Eu tive uma carreira académica complicada porque não me decidia que curso seguir. Fiz três tentativas, preparei-me para três cursos: primeiro para Filosofia, depois para Direito e depois para Arquitectura. Portanto, eu fiz o sexto ano três vezes (na realidade repeti três sextos anos - o que é uma coisa completamente idiota - primeiro o sexto ano para Filosofia, depois o sexto ano para Direito (porque eram diferentes naquela altura) e depois fiz o sexto ano para Arquitectura ... mas enquanto estava a fazer o sexto ano de Direito (ou seja quando decidi que não queria ir para Filosofia) resolvi ir fazer o curso de Pintura porque para o curso de Pintura, naquela altura, era só preciso o quinto ano.

Na Escola de Belas Artes havia três cursos: Pintura e Escultura (que era tudo junto) e Arquitectura. Para se entrar no curso de Arquitectura era preciso o sétimo ano e para se entrar no curso de Pintura e Escultura, apenas o quinto ano. Eu, como já tinha o quinto ano completo entrei em Pintura, enquanto estava a fazer o sexto ano pela segunda vez (para Direito).

Ora bem, por isso é que as datas se me confundem.

Compreendo ... mas deve ter sido em 66, 67 por aí não?

R: Sim, sim. 67, salvo erro foi em 67. E foi quando entrei para o primeiro ano de Pintura que eu conheci o Calhau (que era meu colega na turma do primeiro ano).

E como é que era o contexto, na altura ... o contexto da Escola? Temos, obviamente, a noção de que era académico mas em que termos?

R: O contexto da Escola, para mim, foi super excitante porque eu vinha de um ambiente completamente fechado, como é evidente. Eu era uma espécie de avis rara no seio da minha família (que não tinha qualquer propensão artística). O meu pai achava que era um disparate ...

Mas o seu pai desenhava não era?

R: sim ... mas quando era novo ... e depois deixou ... e sempre considerou isso um hobby. Para ele era assim como fazer palavras cruzadas, não tinha mais importância do que isso.

Agora, para mim, foi um mundo novo que se abriu, até porque me permitiu sair um bocado de casa.

E quando foi para as Belas Artes, agora a propósito disso, fazer Pintura simultaneamente enquanto estava a fazer o sexto ano (para Direito) ... estava a fazer Pintura também como um hobby ou já sabia que queria ser Artista e portanto arranjou ali uma maneira de conciliar ...

R: Não, não, não ... eu já sabia que queria ser Artista. Eu costumo dizer isto e não me canso de dizer isto: os contextos são extremamente importantes e é muito difícil para uma pessoa da sua idade e da sua geração perceber os contextos, porque era uma coisa de tal modo aberrante e de tal forma marciana em relação aquilo que nós vivemos hoje em dia que, às vezes, as pessoas nem acreditam.

Eu sempre fui muito lúcido em relação a uma quantidade de coisas. Eu sempre percebi ... e nessa altura eu tinha a certeza de que queria ser Artista. Mas também tinha a certeza de que era impossível sobreviver como Artista. Impossível! Não acreditava que seria possível. E portanto ...

... Arranjou essa estratégia ...

R: Eu só pensava: "eu tenho que arranjar um trabalho alimentar que me permita ser Artista, que é o que eu quero fazer.".

... e o Direito nessa altura poderia ser a solução ...

R: ... sim, pensei: "Eu faço umas coisas de advocacia, e tal, para poder ser Artista.".

E era nesse sentido, digamos. A minha ideia era ser Artista, o resto era para ganhar umas coroas.

E portanto, voltando ao contexto da Escola ...

R: ... pois o contexto da Escola ... foi um mundo que se abriu completamente e a que não estava nada habituado. Conheci pessoas novas (não estava habituado a conhecer pessoas novas). As pessoas que eu conhecia eram as do Liceu - eu fiz o Liceu todo, e durante o Liceu estava sempre com as mesmas pessoas, de certa maneira, que são os colegas que me acompanharam e de repente vejo-me num mundo com outros colegas que não conhecia de lado nenhum.

Não houve então ninguém da sua formação de Liceu que tivesse seguido Belas Artes?

R: Ninguém. Zero. Aliás, quando eu dizia que ia para Belas Artes olhavam para mim de lado e diziam: "panasca, e tal". Era estranho. Naquela altura, se um tipo ia para Belas Artes era bicha ...

... pois, era uma sensibilidade que não era bem tolerada num rapaz, calculo ...

R: ... não, não era tolerada de maneira nenhuma.

Bom, e nessa altura foi curioso, porque foi a primeira vez que eu tive experiências com mulheres, porque o Liceu era ...

... era masculino exclusivamente ...

R: Sim e eu andava num Liceu que era conhecido por ser particularmente severo nesse sentido. Aquilo parecia uma escola de padres. Nós não tínhamos autorização para falar com uma rapariga num perímetro de 500 metros à volta do Liceu, e se fossemos apanhados a falar (a dizer "Bom Dia") a uma rapariga, havia gajos escondidos (os contínuos que eram pagos para andarem a ver) ... e éramos suspensos.

Mas isso ainda aguçava mais todo um interesse ...

R: Ah, Ah, Ah, claro.

Claro que chegou à Faculdade e ...

R: Oh, eu de repente chego lá e: "UAU o que é isto?".

Também curiosamente naquela altura, e por estas razões, havia muito poucos homens em Belas Artes, pouquíssimos. Não sei quantos seríamos, quando entrei, mas talvez ... seríamos à volta de sessenta no primeiro ano de Pintura e Escultura, e éramos talvez dez rapazes e cinquenta raparigas. Entre os dez rapazes era eu, o Calhau, um tipo que está neste momento em Macau, ... um chamado Vidal (que acho que depois até foi professor na Escola), um tipo chamado António Lobo (que depois foi para Arquitectura), ... e o resto eram tudo raparigas: a Graça Pereira Coutinho, por exemplo, a Sofia Serpa (que já morreu), a Noémia Fernandes, a Sílvia Chicó, a Mafalda Teixeira Rebelo Miquelino, enfim, pronto, ... ah, a Dadinha Ribeiro da Cunha (que na altura se chamava Eduarda Monteiro Grilo). Fomos todos colegas, entrámos todos juntos no primeiro ano.

Ah esqueci-me ... e há também a que se tornou depois minha mulher, a Pikkie.

Como é que ela se chamava?

R: Eleanor Hanson Lyons. Era sul-africana e estava cá. O pai era madeirense e ela fez o Liceu todo na África do Sul e veio para a Faculdade cá.

Bom, então naquela altura o que se passa é que a minha vida começou a ser estruturada de uma maneira completamente diferente porque eu tinha só algumas cadeiras do sexto ano de Direito (porque as outras já as tinha feito), portanto andei um ano inteiro só com algumas cadeiras de Direito e obviamente que passava grande parte do meu tempo era nas Belas Artes e não ligava nenhuma  ao sexto ano do Liceu.

É evidente que as afinidades electivas aqui percebem-se logo, porque as pessoas juntavam-se em núcleos e é evidente que a primeira pessoa que me chamou a atenção (e a gente funcionou logo bem) foi o Calhau. E, de repente, reparámos que eu e ele éramos assim uma espécie de dois marcianos no meio daquelas pessoas todas e porquê? Porque todas aquelas pessoas eram muito académicas e o que, na realidade, pretendiam era serem professores do Liceu. Eles estavam ali, não era para serem Artistas, eles queriam ser era professores do Liceu. Queriam fazer uma formação para poderem dar aulas na área da Educação Visual, etc, era nisso que eles estavam interessados. As únicas pessoas que queriam ser Artistas era eu e o Calhau. Logo isso nos distinguia de todos os outros.

Mas vocês tinham já a noção do que é que era ser Artista nessa altura? Tinham a percepção do que é que isso implicava? E digo não só no contexto português ...

R: ... tínhamos ... o Calhau muito mais do que eu porque o pai do Calhau já vinha dessa área.

Ainda bem que fala nisso. Eu queria justamente perguntar-lhe qual era o contexto familiar do Calhau.

R: O pai do Calhau era designer ... o que se chamava graphic designer na altura. Era uma pessoa que fazia design de embalagens, de capas de livros, e portanto tinha um mundo muito mais virado para essas coisas e meteu o Calhau nesse mundo.

Para ele então foi natural ter embarcado nesta área ...

R: sim, sim. O Calhau ensinou-me muitas coisas, abriu-me os olhos para muitas coisas que eu desconhecia (e por isso é que eu fiquei fascinado com ele). No fundo, foi o pai do Calhau (que eu ainda conheci) que lhe mostrou que existia a Arte Americana (porque tinhas as revistas de design e de vez em quando apareciam umas coisas do Andy Warhol e nós aí começámos a juntar dois e dois, e começámos a ir à Embaixada Americana, que naquela altura tinha uma biblioteca onde se podia consultar o Newsweek, a Time, a Art in America e a Artforum). Portanto nós íamos à Embaixada Americana onde passávamos tardes a ver a Art in America e a Artforum, que mais ninguém em Portugal sabia que existia, porque obviamente ninguém ia à Embaixada Americana ler revistas. E às vezes, eles tinham uma espécie de sobras (quando estavam desactualizadas eram retiradas e oferecidas).

Ou seja, começaram a criar ali um arquivo gigantesco de informação visual ...

R: ... exactamente, que mais ninguém tinha. Isto é, que era acessível mas muito parcamente acessível. Isto resumindo e concluindo, no fundo, devemos tudo ao pai do Calhau (que nem sequer era artista, era designer, mas tinha uma sensibilidade visual bastante diferente, muito diferente da do meu pai que trabalhava num escritório).

E o que é que nessa altura - o Julião diz que foi uma coisa natural de empatia - mas consegue definir mais ou menos o que é que tinham em comum, o que é que partilhavam, para além da vontade de quererem ser Artistas?

R: Era isso. Era essa vontade e eram os gostos. Gostávamos da mesma música, gostávamos das mesmas coisas, gostávamos dos mesmos livros, gostávamos de nos divertir da mesma maneira, gostávamos de mulheres. Percebe? Tínhamos esta coisa de copain, copain. Falávamos uma linguagem que, curiosamente, não era acessível aos outros. Não lhe consigo explicar de uma maneira mais objectiva. É uma coisa que ainda existe, hoje em dia, nas relações entre as pessoas. Tínhamos os mesmos referentes, ao fim e ao cabo.

... e neste caso, ainda por cima, reforçado pelo facto de os referentes terem, em grande medida, sido construídos juntos e partilhados no exacto momento. A cumplicidade é, portanto, maior, não é?

R: Muito maior, nesse sentido, tal e qual.

E nessa altura o Calhau, quando eu o conheci no primeiro ano das Belas Artes, já andava há um ano (posto pelo pai) na Gravura. Portanto o Calhau era gravador, ele começou por ser gravador e já andava há um ano a fazer e a estudar gravura. E quando ele me mostrou ... (eu não sabia que existiam gravuras, naquela altura) ... ele levou-me para lá e comecei a trabalhar com ele.

Era aí mesmo que eu queria chegar ... porque ele fez a primeira exposição individual na Gravura? Muito cedo, não foi? Em 1968.

R: sim, sim. Eu acho que ainda nem o conhecia. Não, não, já o conhecia. Sim, sim, eu já fui à exposição individual dele na Gravura (foi aliás um pouco antes disso que eu o conheci). E depois fez uma exposição na Quadrante, que foi a primeira exposição com quadros, acho ... foi a primeira vez que ele fez quadros. Eu lembro-me perfeitamente de estar em casa dele (ali na Rua de São Mamede ao Caldas) e ele dizer: "É pá olha-me estes quadros com umas coisas a sair ...".

Ah pois eram aquelas com uma espécie de fios amarelos a sair de uns quadrados em perspectiva ...

R: Sim, uns quadrados pretos e brancos com uns fios amarelos, exactamente.

Sobre essa exposição na Gravura eu encontrei a brochura/ catálogo, que foi feita na época para acompanhar a exposição, e que tem um texto do director (à época), Armando Vieira Santos, em que ele fala do Calhau como um dos mais assíduos e interessados frequentadores dos cursos da Gravura. Diz que: "as provas já prestadas deixam entrever uma forte personalidade a que se associam a curiosidade e a insatisfação de quem ainda procura um caminho com a firme decisão de encontrar, através dos processos técnicos assimilados, formas de expressão plástica de franco sentido actual e que melhor se ajustem à sua sensibilidade. É uma nome a fixar!". Também tinha esta perspectiva na altura?

R: Eu, não. Isso é uma perspectiva de historiador quase ... naquela altura éramos novos de mais ...

Claro, mas não deixa de ser difícil olhar para um rapaz de vinte anos, que está a fazer as primeiras coisas, e poder afirmar isto com esta convicção, poder ter esta perspectiva e esta clareza ...

R: O que só prova que era um tipo esperto ...

Ah, ah, ... Tinha visão

R: Claro. Agora eu, não tinha essa visão. Mas percebi que o Calhau era muito bom. Quer dizer, percebia-se ... se você conhecesse o Calhau ... chegou a conhecê-lo?

Não.

R: O Calhau ... era bom. Há pessoas que você topa que são maus e há outros que você não tem dúvida. Está dois minutos a conversar com ele e diz: "Este gajo é bom". Pronto. E o Calhau tinha essa ... aura. Percebia-se logo que era um tipo bom.

Mas ao mesmo tempo era bom no sentido do (e isso é que é curioso, e isso as pessoas que não o conheceram não percebem) do Fernando Pessoa, porque tinha um lado escriturário. O Calhau gostava de andar sempre de fato e gravata ... pintava de gravata, percebe? Podia fazer aquelas coisas mais obscenas de gravata, com aquele arzinho, fazia tudo impecável. O Calhau tinha sempre os vincos das calças impecáveis, o Calhau passava os jeans a ferro, não tinha um grão de pó, não tinha uma nódoa, era maníaco com essas coisas, era mesmo completamente maníaco.

Sim, mas mesmo já na Gravura, nessa altura, ainda nessas gravuras da primeira exposição já se nota muito isso, não é? São de uma proficiência e de um rigor enorme. São gravura (resultantes de um processo inteiramente manual) mas com um rigor de acabamento e com um aspecto final quase industrial.

R: Sim, sim. Mas o Calhau tinha esta coisa muito curiosa ... é que ele era um poço de contradições, porque, em princípio, quem é assim não tem graça nenhuma, só que ele tinha. Por isso é que havia esta dicotomia estranhíssima nele. Porque tinha aquela paciência de chinês. Era capaz de estar quinze dias a pintar um metro quadrado e, poder-se-ia pensar: "Eh pá um gajo que está quinze dias a pintar isto de preto é um chato!" mas ele não era um chato. Essa contradição é que era curiosa no Calhau.

E isso era uma coisa que era simultânea nele? Ou eram só dois lados da mesma moeda que se manifestavam à vez?

R: Não, não. Era completamente simultâneo, por isso é que era desconcertante. Era completamente simultâneo.

Ainda a propósito deste texto no catálogo em que se lhe tecem estes elogios todos, fez-me pensar que, na altura (e apesar de ele ser ainda novo e, para além disso que me disse, que ele tinha uma aura de qualidade que o precedia) não deixa de ser estranho este lado já meio 'estabelecido' que ele parecia ter. Como é que o director de uma instituição lhe tece estes rasgados elogios, sendo ele tão novo e tendo provado ainda tão pouco? Acho estranho ...

R: Porque o Calhau era muito institucional. Tinha um lado super formal (que é o tal lado Fernando Pessoa/ escriturário).

Mas em que medida? Era cordial e bem educado?

R: Era muito cordial, muito bem educado, mas depois fazia rigorosamente aquilo que queria. Mas andava sempre ali com as pessoas nas palminhas, dizia a tudo que sim, era muito palaciano ... um extraordinário palaciano ... no sentido em que prometia tudo, fazia tudo, dizia tudo, mas depois fazia rigorosamente aquilo que queria. Não mexia um milímetro naquilo que queria fazer, por isso é que digo que ele era um grande poço de contradições.

Estou precisamente a perceber isso.

R: Ou seja, se eu lhe descrever o Calhau como ele era fisicamente e o comportamento social dele, você pensará: "Este gajo era um chato que não interessa nada", percebe? Mas ...

Também li numa entrevista que ele não tinha qualquer razão de queixa da crítica e que sempre se sentiu muito apoiado, desde início. Inclusivamente foi convidado, à época, para exposições com artistas mais velhos e de uma geração que não era a dele, era a anterior. Temos o exemplo da exposição colectiva que inaugurou a Galeria Quadrum, em Lisboa, em 1973, em que ele é, talvez, o artista mais jovem a participar (com duas pinturas).

R: Exactamente. E foi o primeiro artista jovem a ter uma artigo e a fazer capa da Colóquio Artes, com um artigo muito laudatório do José Augusto França que lhe chamava: "o moço artista". O que nós nos rimos. O Calhau, ele próprio, a ler: "... o moço artista ...". Ah, ah.

Ah, ah. Mas como é que acha que isso surge? Para além da qualidade intrínseca do trabalho dele, à época, ... não deixa de ser estranha esta receptividade.

R: É que o trabalho dele era tão diferente de tudo e tão obviamente bom ...

... já nessa altura ...

R: ... já nessa altura. Sempre foi! É horrível dizer isto e é muito difícil perceber isto (principalmente fora do tempo) mas tudo o que ele fazia era mesmo bom. O Calhau era uma espécie de Bruce Nauman, tudo o que fazia era bom. Ele não fazia uma coisa má.

Pois, há uma altura em que ele também diz que era muito rigoroso em relação à maneira como as obras se tornavam públicas. Tinha um cuidado extremo em tornar pública uma obra ... em deixá-la acontecer ... e isso só era possível quando ele achava que a obra 'funcionava'. Se 'não funcionava' voltava atrás, pintava tudo de branco outra vez e começava do zero.

R: Tal e qual. Isso é rigorosamente verdade.

Ou seja, tudo aquilo que ele fazia era bom porque havia, de facto, esse rigor, como se houvesse nele um filtro gigantesco que não deixava sair qualquer coisa que não correspondesse áquele padrão de exigência ...

R: ... que é provavelmente o que acontece com o Bruce Nauman. Não acredito que haja super-homens. Tudo o que ele faz é bom, e aquilo que está no estúdio e que nós não vemos?

Sim, com todos os artistas será assim. Com uns mais que outros naturalmente ...

Voltando ainda à Gravura. O Julião acabou de me dizer que o Calhau o levou para a Gravura. A Gravura era uma espécie de espaço onde vocês podiam fazer coisas que não podiam fazer nas Belas Artes, por exemplo?

R: Nas Belas Artes não havia gravura, na altura. Não havia uma prensa. A Gravura era mesmo um estúdio só de gravura.

Mas eu digo conceptualmente. Podiam fazer projectos e conceber coisas que nas Belas Artes não tinham lugar porque havia um maior espaço de liberdade, era assim?

R: Ali tínhamos mesmo toda a liberdade do mundo. E depois tínhamos aquela coisa porreira que era se o concelho técnico gostasse daquilo que nós fazíamos ...

... podiam fazer uma exposição ...

R: ... e não só. Podiam editar-nos a gravura. Faziam a edição, que era o que toda a gente queria.

O Calhau também dizia, a propósito disso, que não conseguia conceber (no início da sua carreira) ... e isto é estranho ... uma obra que não fosse uma espécie de matriz que pudesse dar origem a uma série.

R: Mas isso tem, quanto a mim, a ver com facto de ele ter começado justamente pela gravura, nitidamente.

Ele era um serialista.

E continuou sempre a ser ...

R: ... e continuou a ser, sempre foi.

Há até alguns autores que dizem que a produção inicial de gravuras, nesta fase, já continha os ingredientes principais que se vêm a revelar ao longo de toda a carreira e de toda a obra. Eu não percebi exactamente se isto era uma coisa programática (em que ele já sabia perfeitamente o que lhe interessava fazer) ou se era ...

R: Sabia perfeitamente. Ele era uma espécie de Bob Ryman. Ele sabia perfeitamente.

Mas não tinha um lado experimentalista, de todo?

R: Tinha. O Calhau era experimentalista. Extremamente experimentalista na maneira de fazer, ou seja, na maneira de lá chegar.

O processo artístico (o seu, o meu, o de todos nós) é o nosso discurso e a maneira de conseguirmos fazer qualquer coisa. Há artistas que são mais processuais - o que lhes interessa é o processo - a outros o que interessa é muito mais o resultado final. Ao Calhau interessava muito este processo (onde experimentava e era super avançado) mas ele sabia perfeitamente o resultado a que queria chegar, que era sempre o mesmo. O Calhau era o típico artista que pintava sempre o mesmo quadro ...

Ele diz isso, aliás ...

R: ... de maneiras diferentes. O Calhau era, como ele se descrevia a ele próprio, um minimalista. Era uma minimalista pós-conceptual, de certa maneira. Mas era um minimalista. É, de facto, o único minimalista português. O único. O único que leva os ensinamentos do Judd até ao fundo.

Mas é curioso que chega lá por via da Pop.

R: Chega por via da Pop mas repare, a Pop foi a maneira de nós percebermos a existência da arte contemporânea, por via do pai ...

... claro, com o Design.

R: Sim, com as revistas. Portanto, antes da Pop nós não sabíamos que existia o Carl Andre, o Donald Judd ou o Sol Lewitt. Não sabíamos da existência de nada. Começámos a perceber que a Arte era mais do que o Picasso, ou do que o Carlos Reis ou do que o Van Gogh ... e quando começámos a perceber isso, o nosso veículo foi a Pop Art, não tenha dúvida nenhuma. O nosso veículo foi a Pop Art, porque nessa altura (e eu não me canso de dizer isto) de facto, em Portugal o nosso acesso à informação era limitadíssimo. Por exemplo, a Nova Abstracção Americana, a escola greenberguiana e rosenberguiana, os Colorfield Painters ... tudo isso nós não fazíamos ideia que existia ... o Pollock ... não, nós conhecemos tudo isso depois do Andy Warhol, via Pop. Depois é que nós começámos a abrir e a olhar para trás, porque o que se ensinava nas Belas Artes, em termos de ensinamentos de História de Arte, acabava no Dalí (enfim porque era espanhol) ... não ia além do surrealismo.

Portanto as primeiras vanguardas do princípio do século. Mas não dos construtivistas russos, presumo, por razões políticas?

R: Não, não, nem sequer sabíamos que existia o Malevich. Nem pensar!

Porque podiam ter chegado ao Minimal por essa via ...

R: Mas não, não.

Só depois? Depois do 25 de Abril, talvez?

R: talvez já na primavera marcelista. Por aí ... mas não sei bem porque nessa altura nós já sabíamos muita coisa porque andávamos sempre à procura de informação. Éramos ávidos de saber essas coisas.

Voltando ao assunto. Então na sua opinião era mesmo uma coisa programática, que ele definiu e sabia perfeitamente onde ia dar. Portanto ele estava a usar a gravura, não só porque era serial mas também porque lhe permitia, com a serigrafia, produzir superfícies planas de uma só cor (monocromáticas já), porque lhe permitia ter o rigor e o controlo paciente da mão ...

R: ... de que ele gostava ...

Eu tinha a ideia de que poderia ser uma coisa mais empírica ... de impulso obsessivo ... como uma espécie de necessidade de fazer e não só uma coisa que se faz de determinada maneira para atingir um determinado resultado (que até já se sabe qual é).

R: Não, ele não era nada assim, nada, nada, nada. O Calhau era a pessoa mais racional, mais cerebral que eu alguma vez conheci. Era de uma racionalismo que era violento, às vezes.

É porque no documentário em que ele dá uma entrevista ao Delfim ...

R: Eu nunca vi esse documentário, por acaso.

... e em que ele diz que não se considerava minimal ...

R: Está bem ... ele pode dizer isso ...

... na altura, percebe? Quando estava a fazer aquelas coisas em gravura e depois passou para a fotografia (quando foi para Londres), quando fez os filmes, quer dizer, não tinha exactamente a percepção de que aquilo ia dar ... não era uma decisão.

R: Não, não, pois provavelmente quando estava a fazer as fotografias não sabia que depois ia fazer superfícies planas ... mas aquelas fotografias já eram, por exemplo as superfícies de mar ou os rectângulos de relva, são superfícies 'minimais'.

Ele na entrevista diz que não, que estava preocupado com a questão do tempo e do espaço e da memória ... como se aquelas imagens servissem para isso, para falar sobre isso e não para chegar a um resultado minimal ... como se fossem só ferramentas para falar sobre o espaço, o tempo e a memória.

R: E eram ... o Calhau era um artista minimal em termos formalistas mas não era um artista minimal em termos conceptuais. Até porque não podia ser porque o Calhau é português não é americano. Nenhum tipo que não seja americano é tão quadrado que possa ser minimal.

Sim claro. É toda uma matriz cultural que não o permite.

R: Precisamente ... mas isso não invalida que o resultado formal do trabalho do Calhau fosse e seja minimal.

Se calhar até acabou por ser mal catalogado em algum momento só por essa aparência formal do trabalho dele.

R: É possível ... até porque o Calhau é incatalogável.

Pois o Calhau não tem grupo, não tem família ...

R: ... não tem família, porque era exactamente um poço de contradições, em tudo.

Era e tinha um lado muito romântico também ...

R: ... era muitooooo romântico.

Mais à frente isso é mais evidente. Com trabalhos como os "Night Works", que vinham dum contexto mais poético ...

R: Não eram bem poéticos, eram mais desesperados do que poéticos ...

Digo isto porque ele diz que nessa altura andava a ler o Fernando Pessoa (lá está) e que estava particularmente interessado na "Ode à noite" e nesse lado contemplativo da noite, portanto que aquelas obras vinham desse lado de relação poética com a noite.

R: Vêm, vêm daí, mas também vêm da solidão do Calhau (até porque estas coisas não nascem por acaso) e da maneira como a vida dele se estruturava e como ele a via esboroar-se, e no poço de contradições que existiam dentro dele que era, se por um lado tinha a perfeita noção e a vontade imperativa de ser um artista extraordinário, por outro lado ...

... tinha o lado institucional ...

R: ... isso, tinha o lado institucional que não o deixava ...

Já vamos à frente falar mais sobre isso, que também é uma coisa que me inquieta. Há, no entanto, uma coisa que me interessava introduzir agora. Ele diz que o Julião se diz como um Artista (lato sensu) mas que ele não, que ele não é um Artista, que é assumidamente um Pintor. Concorda com isso? Tem a mesma percepção?

R: Não. Quer dizer, não concordo nem deixo de concordar, ele terá a sua opinião. Na minha opinião não. O fim do Calhau não era a pintura. Todo o processo do Calhau não era para chegar à pintura. O discurso dele não era um discurso sobre a pintura. Era um discurso sobre o espaço e sobre o tempo, portanto não sei porque é que ele acha que era um Pintor.

Se calhar também porque o trabalho tem a ver com o espaço e o tempo que as coisas demoram a produzir e portanto, se calhar, no sentido do apuramento técnico e do rigor quase ético na construção das obras ... aquilo continha também um discurso sobre a pintura.

R: Sim, é possível. Por exemplo ele era um tipo que gostava muito dos filmes do espaço e do tempo do Warhol (era das coisas que ele mais gostava) ... tipo o "Empire State Building is a Star", o "Sleep". Daqueles em que a acção é prolongada durante o tempo real em que decorre. Interessava-lhe imenso esse tipo de coisas, portanto, isto tem pouco a ver com a pintura, com o discurso da pintura.

Aliás, durante a altura em que ele produziu filmes não fez outra coisa, ou fez? Fotografia?

R: Fez. Fez gravura e fotografia, exactamente. Foi na altura em que ele esteve em Londres, estava na Slade a estudar gravura com o Bartolomeu Cid dos Santos ...

... pois foi bolseiro da Gulbenkian para ir para lá estudar gravura.

 O Julião quando é que deixou as Belas Artes?

R: Completamente e definitivamente em 74 quando vim da tropa ... talvez 75.

E essa era a altura em que ele estava em Londres? Acabou o curso em 1973 e foi em 74 para Londres, com a bolsa, tendo regressado em 75. Nessa altura durante o tempo que esteve em Londres comunicavam? Chegou a ir lá alguma vez? Ele vinha cá?

R: Comunicávamos sim, mas nunca fui lá. Naquela altura viajar era complicadíssimo, não dava. Ele veio cá duas ou três vezes.

Mas mantinham contacto? Falavam-se com frequência? Falavam sobre aquilo que estavam a produzir, em que estavam a trabalhar?

R: Falávamos por carta e não, não falávamos sobre o trabalho, quer dizer, pouco, às vezes.

Mas o Julião nessa altura o que é que estava a fazer cá?

R: Eu estava na tropa.

Então e o Calhau? Não fez tropa então?

R: Ele fez o início mas não foi considerado porque tinha asma. Passou à disponibilidade.

Então as intermitências todas que o Julião teve durante esse período, ele não as teve.

R: Fez o curso de uma forma linear, porque ele nunca foi para Arquitectura. O Calhau não tinha o sétimo ano, só o quinto ano do Liceu que era o que era necessário para entrar para Pintura. Portanto ele fez o curso, fez a tropa, despachou rapidamente o assunto e depois foi para Londres. Enquanto eu fazia a Pintura e a Arquitectura. E depois, quando estava na tropa, estava lá vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, não podia fazer mais nada.

Quando é que viu então as coisas que ele tinha produzido em Londres? Quando ele vinha cá ou depois quando regressou?

R: Quando ele vinha cá trazia muito poucas coisas, portanto aí não vi muitas coisas mas depois, quando ele veio definitivamente, aí é que vi o grosso da produção.

Pois porque ele depois até fez uma exposição na Gulbenkian.

E nessa altura o que é que o Julião estava a fazer em termos de trabalho? Tem alguns filmes de 75 ...

R: Estava na tropa ... mas sim estava a fazer filme. Lembro-me que no dia em que ele inaugurou na Gulbenkian estava eu no jardim da Gulbenkian a filmar o "1, 2, 3". Portanto, eu não sei qual foi o primeiro filme (como sabe eu sempre me interessei muito por cinema ... pelo outro cinema). Eu não sei muito bem mas eu creio que o Calhau começou a fazer filmes em Londres e eu comecei a fazer antes. O meu primeiro filme é de 1967 chamado "Graça de sua graça".

... que também já era em super 8 ...

R: sim, sim. Eu nessa altura fiz muitos filmes, porque como estava na tropa e não tinha acesso a outros materiais trabalhava com filmes e com fotografia, portanto estava a fazer fotografia e filmes fundamentalmente na altura em  que ele regressou.

Viu a exposição na Gulbenkian, presumo?

R: Vi claro. Estive na inauguração e tudo.

E quando viu aquelas coisas que ele tinha produzido em Londres achou que aquilo tinha alguma nuance de frescura e novidade? Interessou-lhe?

R: Adorei. Achei maravilhoso. Achei que sim absolutamente. Fundamentalmente porque a exposição era de gravura só. Eram os ozalides (como aquele que eu tenho na minha colecção: "O Mar e a Terra") e eram gravuras, foto-gravuras ...

Daquelas que ele dizia que podia fazer em Londres mas não cá, porque não havia tecnologia.

R: Exactamente. A Gulbenkian pagou-lhe a Bolsa para ele estudar gravura na Slade, com o Bartolomeu Cid dos Santos, portanto esta exposição foi o resultado do trabalho que ele desenvolveu em Londres.

Ok, agora para outra coisa completamente diferente: A dada altura entram os dois para a Função Pública, para a Secretaria de Estado. Como é que isso acontece? Foram convidados? Entraram por concurso? Em que ano foi?

R: Em 1975. Eu e o Calhau andávamos por aí, éramos muito amigos, andávamos sempre juntos e ...

... e precisavam de um trabalho que vos garantisse um rendimento ...

R: ... sim, não tínhamos dinheiro. Foi na altura em que eu acabei a tropa e ele tinha vindo de Londres e estávamos os dois assim numa situação um bocado precária. Eu tinha-me separado, tinha começado a viver com a Lena.

Pois o Julião entretanto casou e esteve fora do país, não foi? Em Moçambique? Onde terá feito a sua primeira exposição individual?

R: Sim, casei e estive fora em Moçambique e em Joanesburgo. E entretanto não tínhamos dinheiro. Não tínhamos maneira de sobreviver e tínhamos dois grandes amigos que era o João Vieira e o Eduardo Prado Coelho, e então eles disseram-nos que ia abrir a Secretaria de Estado da Cultura e que iam fazer um departamento de vídeo e que queriam divulgar mais as Artes Plásticas (para não seguirem as pisadas do SNI), e convidaram-nos para irmos para lá trabalhar. O Calhau para a parte das Artes Plásticas e eu, como trabalhava com vídeo, pediram-me especificamente para organizar um Gabinete de Vídeo.

Então as vossas funções nessa altura tinham um lado sobretudo administrativo?

R: Sim, sim. Tinham um lado prático mas sobretudo administrativo.

Sobre esta parte é que eu não consegui encontrar muita informação: O Julião entretanto sai da Secretaria de Estado (ao fim de dez anos), e o Calhau continuou e seguiu a sua carreira institucional até ao fim, quase até morrer. Não consegui encontrar grande informação sobre a evolução da carreira institucional dele, até ao momento em que volto a ouvir falar dele na fundação do IAC (um projecto que lhe é totalmente atribuído e que todos afirmam ser o resultado de uma vontade e obstinação dele). Mas desde este início (1975) até esta altura (1996/ 1997) não há muita informação sobre o percurso institucional dele.

R: Então, era um funcionário público. Era o chefe da Divisão de Artes Plásticas, era este o cargo dele. A Direcção Geral de Acção Cultural tinha várias Divisões: Divisão de Cinema, de Teatro, de Literatura, de Artes Plásticas, e ele era o Chefe dessa Divisão.

Ou seja, tinha um cargo de decisão já ...

R: Era uma espécie de mini-IAC. Sim decidia, ou melhor, propunha e recomendava. Dava o seu parecer. Tinha que reportar ao Director de Acção Cultural (acima dele) que depois reportava ao Secretário de Estado.

Ok, mas de qualquer forma, durante esse período (pelo menos até arder a Galeria Nacional de Belém) ele conseguiu pôr alguns projectos de pé. Essas iniciativas eram propostas vossas presumo.

R: Sim, completamente. Você acha que alguém sabia quem era o Dan Graham? Ou que alguém sabia quem era o Muntadas? Ninguém. Sabia o Ernesto de Sousa, obviamente, mas dentro do aparelho do Estado ninguém sabia.

E é nessa altura que começam a dar-se com o Ernesto também? Nesse pós-25 de Abril?

R: Exactamente. Eu acho que o Calhau conheceu o Ernesto numa das vindas dele cá na altura de Londres (mas posso estar enganado ... pode tê-lo conhecido antes mesmo de ir para Londres). Mas eu, nessa altura, não conhecia o Ernesto. Depois do Calhau vir de Londres é que ele me disse: "Eh pá tens de conhecer o Ernesto que é um gajo porreiro." E foi aí que ele me apresentou o Ernesto.

Mas o Ernesto de Sousa não tinha nenhuma relação com a Secretaria de Estado pois não?

R: Não, não, zero, nenhuma. O Ernesto era fundamentalmente um crítico e um tipo informado e muito dinâmico que organizava exposições e eventos e coisas à volta das Artes Plásticas ... sardinhadas ...

Ah, ah. E então tinham com ele uma grande empatia ...

R: Sim o Ernesto era o nosso mestre. Meu e do Calhau. Idolatrávamos o Ernesto.

Sendo vocês já tão atentos e informados, o que é que o Ernesto vos trouxe mais? Qual era o fascínio?

R: Nós continuávamos a ser únicos. Eu e o Calhau em Portugal não tínhamos nenhum interlocutor. Até que nesta altura encontrámos o primeiro interlocutor, que era o Ernesto. Que era mais velho, sabia mais do que nós e tinha mais prática. Ou seja, era uma espécie de nosso pai. Falava a mesma linguagem que nós. Nós dizíamos "mata" e ele dizia "esfola", tinha as mesmas referências que nós ...

... para além de que tinha uma energia fora do normal e era muito entusiasta, portanto ...

R. ... era, era super-entusiasta. Você falava com o Ernesto durante cinco minutos e carregava as pilhas para uma semana. Era extremamente estimulante, era super-entusiasta e para nós era ouro sobre azul, percebe?

Percebo, percebo. E em relação ao IAC, era (como eu estava a dizer à bocadinho) de facto um projecto dele?

R: Sim, completamente dele. Inventado e pensado desde o início pelo Calhau.

E para responder a quê?

R: O Calhau era socialmente muito preocupado.

Tinha um sentido de dever público é isso?

R: sim, tinha um sentido de dever público e sentia a necessidade e a falta de instituições e de museus para a Arte Contemporânea e a necessidade de se apoiarem os jovens artistas. Preocupava-se com isto mesmo de uma forma altruísta. Ele achava que o Estado não tinha uma forma de ajudar os artistas, e a ideia dele era fazer com que isso pudesse ser mais ou menos possível.

Pois é mesmo nessa altura que surgem muitas críticas justamente em relação às ajudas aos artistas ... querendo dizer que ele favoreceria determinado núcleo de artistas em detrimento de outros ...

R: ... acha que sim?

Não sou eu que o estou a afirmar, estou simplesmente a relatar o facto de terem existido, à época, algumas críticas nesse sentido. Apareceram uma série de críticas na imprensa da altura que apontavam esta questão como descredibilizadora do trabalho do IAC. Eram as opções e as decisões em relação aos apoios que estavam sobretudo em causa.

R: sim, sim, percebo. Mas o Calhau tinha, de facto, opções artísticas e nunca fugiu das suas opções artísticas. O Calhau era um bocado permeável mas tinha opções artísticas. Ele achava que uns eram grandes artistas e achava que outros eram maus artistas, e se uns lhe pedissem um subsídio ele dava e se outros lhe pedissem um subsídio ele não dava ... bom, mas eu acho isso correcto!

Mas era ele que concentrava esse poder?

R: Quer dizer, não totalmente, ele não decidia. Ele oferecia um parecer ao seu superior hierárquico, no caso, o Ministro (Manuel Maria Carrilho).

Mas ele nunca fugiu. Nesse aspecto o Calhau era super democrático, tinha muito cuidado, era muito palaciano. Agora, favorecia naturalmente as coisas de que gostava ... (aliás e agora aqui só entre parêntesis, acho que ele fazia muito bem porque uma instituição deste tipo tem, para além de outras obrigações, nomeadamente uma obrigação formativa, donde: se se pode apoiar e ajudar aquilo que tem qualidade porquê que se vai apoiar aquilo que não interessa?)

Pois mas o que na altura se apontava (e que na altura em que eu entrei para o IAC era ainda uma questão muito presente e a necessitar de revisão) era o facto de não haver, para esses apoios, qualquer tipo de critérios definidos. Era uma coisa que resultava de uma avaliação meramente subjectiva ...

R: ... todas as avaliações são subjectivas.

... pois mas com dinheiros públicos deve evitar-se incorrer em certo tipo de subjectividades.

R: ... mas você não pode avaliar Arte com critérios definidos.

Tem toda a razão, mas aquilo de que eu falo e de que se falava na altura é que não é possível nem aceitável atribuir um apoio público com base num critério de amizade ou de simpatia, percebe? Esta era a grande questão ... era aqui que residia a crítica.

R: ... ah! Mas aí, digo-lhe, o Calhau era muito formal e estas coisas eram todas e tinham todas que ser formalizadas. Essas críticas eram todas completamente falsas, digo-lhe já. Nunca ele permitiria que isso acontecesse assim. O Calhau era muito formal. O Calhau gostava de papeis. Era muito oficial. Comigo (que era como se fosse irmão dele) ele, às vezes, prejudicava-me exactamente por isso. O Calhau quando era do Conselho Técnico da Sociedade Nacional de Belas Artes (quando nós éramos artistas e tentávamos entrar nas exposições), por exemplo, ele era do júri, e se eu entrava com uma obra a concurso, ele pura e simplesmente não aparecia na reunião do júri. Veja lá como ele era!!!

Eu compreendo isso perfeitamente e, devo dizer-lhe que me reconheço nesse comportamento ...

R: Ele era assim. Era legalista, legalista, rigorosíssimo.

Os padrões eram então os da qualidade e o que era apoiado era então aquilo que ele considerava incontornável e que, para acontecer, precisaria do apoio do Ministério da Cultura?

R: Tal e qual. Agora, em termos burocráticos era super legalista mas também tentava (e isso eu acho porreiro) desbloquear e acelerar os processos e tentava facilitar o mais possível os procedimentos.

Um dos motivos para a criação do IAC era, para além da plataforma de apoio à Arte Contemporânea, a tentativa de agilizar os processos através desta estrutura mais leve.

R. Pois, pois, porque antes do IAC o que acontecia era que, para além de não haver tantos meios nem tão directos, quando você queria fazer uma exposição, pedia um apoio, justificava e esperava três meses (que era o tempo de dar a volta à Secretaria de Estado) até poder ter uma resposta. Ele, de facto, agilizou a coisa de uma maneira incrível.

Agora, ainda em relação a isso que você me está a dizer dessas críticas, que eu aliás desconhecia, não são nada fundamentadas.

Desconhecia? Mas saíram em vários jornais, à época, e mantiveram-se na opinião de alguns comentadores especializados durante bastante tempo.

R: Não me lembro. Não devo ter ligado nenhuma.

Então agora aqui ainda a propósito deste lado institucional, o Julião acha possível o conciliar destes dois lados (provavelmente vai-me dizer que não, dada a sua experiência) ... o conciliar do trabalho artístico com o trabalho institucional.

R: Eu conciliei durante 10 anos, até conseguir. A páginas tantas já não aguentava mais e por isso mesmo é que desisti. Cheguei à questão: "ou sou artista ou sou funcionário público?".

Mas durante esse tempo tinha a noção de que era prejudicial, de que era uma pedra no sapato, de que era uma chatice?

R: Completamente. Ocupava tempo, não me deixava ...

Mas o Calhau parece nunca ter pensado dessa maneira ... ele parece que gostava destes dois universos. E, no caso dele, era conciliável?

R: Sim, sim, o Calhau até dizia a brincar que era um pintor de fim-de-semana, de domingo. Ele tinha muito de Mondrian, nesse sentido.

Era então disciplinado?

R: Super disciplinado.

E considera que o facto de ele ter estado tanto tempo ligado a esse lado institucional (de que ele gostava) foi uma coisa que lhe tirou visibilidade?

R: Ele não queria ter visibilidade.

Não? É curioso porque intuí precisamente isso nas pesquisas que fiz, mas sem certezas.

R: O Calhau gostava de produzir para dois ou três amigos verem (entre os quais estava incluído eu e sinto-me muito honrado por isso), para ele ver, para a Cândida ver, para o Ernesto de Sousa ver.

Ou seja, considera que não o angustiava nada o facto de não ter tido uma carreira explosiva.

R: Nada. Nunca quis. Foi uma opção.

Há até um período em que ele fez muito poucas exposições.

R: Não só fez muito poucas exposições, como tinha muito pouco trabalho ... até porque passava o dia inteiro na Secretaria de Estado da Cultura.

Li até que houve um período de dois ou três anos em que ele só produziu uns desenhos mínimos quando estava em casa a ver televisão. Eu não tinha esta noção perentória, mas tinha uma desconfiança em relação ao facto de ser uma escolha.

R: Ana, estamos num território muito pantanoso, que é o território daquilo que é e daquilo que parece. A única coisa que eu lhe posso dizer é que por todas as atitudes do Calhau, por tudo aquilo que ele disse, por tudo aquilo que ele fez, por tudo aquilo que ele afirmou a nível pessoal e íntimo comigo, ele estava-se nas tintas. O gajo queria ser artista porque gostava de ser artista mas estava-se nas tintas para o lado exterior de se ser artista. Queria ser artista para três ou quatro pessoas e para ele próprio. Isto é o que ele sempre afirmou e eu sempre o conheci assim, agora, seria verdade? Eu não sei. No fundo, eu não sei.

É estranho, ao mesmo tempo, porque há um lado de obstinação na personalidade dele o que me leva a achar que se, de facto, ele quisesse ter tido outra carreira teria com certeza conseguido tê-la. Teria feito um esforço nesse sentido, teria recorrido a inúmeros recursos que inclusivamente foi adquirindo na sua vida institucional e que aliados ao seu lado palaciano lhe trariam frutos. Não crê?

R: Sim, sim. Eu estou convencido que ele não queria mesmo. Mas ao mesmo tempo,  What a waste!!! Percebe? Eu penso (e que fique aqui gravado): eu acho que o Calhau é o maior artista português de todos os tempos. Digo-lhe mesmo isto e muito honestamente. Acho que é, seguramente. Não houve nenhum outro que se lhe aproximasse.

E ainda por cima (estava aqui a pensar) nem sequer teve uma carreira internacional.

R: Zero.

Tudo o que fez foi no contexto nacional.

R: Claro.

É estranho, porque ele era uma pessoa que tinha contactos internacionais?

R: Sim, tinha alguns. Poucos, mas tinha, sim. Sobretudo depois de ir para a Secretaria de Estado porque antes quando esteve em Londres dava-se era com os portugueses. O Calhau sempre foi um tipo muito estranho e contraditório a todos os níveis. Era uma poço de contradições.

Tudo isto parece também muito fruto da sua personalidade discreta.

R: Sim, o Calhau era muito discreto e se calhar não estava mesmo nada interessado no sucesso vertiginoso. Era um tipo adorável. Não tinha mau feitio. Era uma pessoa maravilhosa. Super querido, muito carinhoso, muito, muito afectivo. What a waste!

Ainda por cima, depois da morte dele (que se poderia dar a volta a isso tudo), tornou-se impossível com a doação do espólio à Gulbenkian. Retirou-se tudo aquilo que havia e que poderia circular em termos de mercado (que é a coisa mais importante para que um artista se mantenha vivo, que é a obra do artista poder circular), e foi tudo entregue à Gulbenkian.

Está a falar em circulação em termos de mercado (de vendas)? Ou está a falar também em termos de se poderem continuar a fazer exposições com o trabalho dele?

R: Tudo anda junto. Repare, se a Cristina Guerra (que era a Galeria que o representava) continuasse a representar o Estate do Calhau (como o Sean Kelly representa o Estate do Mappletorp , por exemplo), ele continuaria a existir. Eles continuam a existir, estão em exposições, estão em leilões, quer dizer a obra deles continua a existir, é visível!

Sim, mas se já antes de ele morrer a obra dele não tinha esse lado ...

R: Não tinha esse lado porque ele não queria.

Mas porque é que depois de morto alguém tinha que querer?

R: A obra dele é importante. É património da humanidade.

Mas vai continuar a ser possível fazerem-se exposições.

R: Não vai não. Como? Quem é que vai fazer exposições com a obra dele?

Enquanto ele foi vivo fizeram-se as exposições que ele permitiu ... ele fez rigorosamente aquilo que queria. Agora depois da morte dele (agora que ele já não está cá) era bom que as pessoas pudessem usufruir da obra dele e que a obra dele não morresse, existisse, estivesse viva como antes. O que acontece é que a obra não existe, está fechada dentro de um mausoléu. Não existe. Se você perguntar "Quem é o Calhau?" ninguém sabe quem é o Calhau.

Pois isso é uma coisa preocupante e que eu queria abordar consigo. De facto, o Calhau morreu em 2002 e depois disso foram feitas apenas duas exposições, pelo Nuno Faria,  e sobretudo com o espólio doado à Gulbenkian. As duas com um olhar museológico, e com uma tendência eternizadora quase. O que é estranho é que entre 2002 e 2009 não tenha havido nenhum curator ou young curator a pensar numa exposição com a obra do Calhau. Se as coisas estão na Gulbenkian, e se a maior parte da obra dele em colecções privadas até está em Portugal, é possível ter acesso a ela, é possível pedir as coisas, é possível pensar exposições que incluam o trabalho dele. Acha que há um desconhecimento e que isso leva a esta espécie de esquecimento?

R: Acho que sim. Não se vê a obra do Calhau. Não existe. Enquanto que há artistas que você está sempre a tropeçar na obra deles (e portanto quando pensa numa exposição pensa neles), o Calhau não ... desapareceu. A maior parte dos young curators sabe da existência do Calhau, mas nem se lembram. Como não é um artista que esteja presente, a obra dele não está presente, nem se lembram. Agora para a exposição da minha colecção, a única coisa em que eu insisti e fiz questão de dizer ao Delfim (apesar de, com ele, quase não ter sido preciso insistir) foi para incluir várias obras do Calhau. Para mim é fundamental!

De qualquer forma é muito estranho. Não creio que isso aconteça por desconhecimento. Em 2001 (há bem pouco tempo) foi feita na Gulbenkian uma antológica, pelo Delfim Sardo. Ainda que a minha geração (e a anterior) não tivesse grande relação ou grande proximidade com o trabalho dele (por causa dessa descrição que lhe pontuou o percurso), para a geração a seguir à minha não há desculpa. Os anos 2000 abriram com essa como sendo uma das exposições mais marcantes do ano.

R: Sim e a exposição era muito boa. O Delfim fez um óptimo trabalho, apesar de o espaço não ser o ideal. O Calhau nessa altura já estava muito doente mas acompanhou as escolhas e as decisões de montagem.

E em relação às exposições feitas pelo Nuno Faria, o Julião viu? Viu a da Gulbenkian e a do Centro Cultural Vila Flor?

R: Não, só vi uma, a da Gulbenkian.

E considera que a exposição na Gulbenkian teria sido possível naqueles moldes se o Calhau fosse vivo, ou não?

R: Jamais. Aquela exposição representava tudo aquilo que o Calhau não era e tudo aquilo que o Calhau nunca quereria. E revelava um desconhecimento absoluto do trabalho do Calhau. Só a maneira como aquela peça "Norte e Sul" estava colocada é não perceber a obra do Calhau e é não perceber a peça. Convocou um mausuléu para o Calhau quando o Calhau era luz, não era sombra ... fazia sombra na luz, que é completamente diferente. O Calhau se visse aquela exposição dava duas voltas no túmulo. Aquilo é fruto de um absoluto desconhecimento. Ele conheceu mal o Calhau (ele chegou a trabalhar com ele no IAC mas nunca teve uma relação muito próxima com o Calhau). Aquela exposição era exactamente a antítese do que deveria ser uma exposição do Calhau. Aliás, se você viu a do Delfim, percebe logo imediatamente a diferença entre uma coisa e a outra.

Sim, mas havia propósitos diferentes. O Nuno Faria queria sobretudo trabalhar com o lado mais íntimo e mais recolhido do Calhau (ou aquilo, que disso, é visível no trabalho do Calhau ... nos pequenos desenhos, nas pequenas pinturas, nalguns filmes).

R: Sim mas isso não passa por aquele ar lúgubre que a exposição tinha. E o Calhau não era nada lúgubre. O Calhau estava a morrer e estava a rir-se e a contar anedotas.

Há várias pessoas que falam disso ... do sentido de humor particular e espirituoso.

R: Eu devo ter sido (sem contar com a Cândida) a última pessoa a ver o Calhau antes de morrer. Eu ia vê-lo frequentemente. Eu estive com ele à tarde, ele lá estava a contar as suas anedotas e a dizer os seus disparates, e eu estive lá até às 19h e fui para casa. Nessa noite ele foi para o Hospital de urgência e morreu. E portanto o Calhau duas horas antes de morrer estava a contar anedotas. O Calhau era exactamente o oposto, era um tipo super jovial e super bem disposto.

Acha então que o Nuno Faria olhou para a obra de um ponto de vista completamente desajustado.

R: Não, errado mesmo.

E outra coisa grave que revela um desconhecimento absoluto: O Calhau tinha uma prática que era pintar pequenos quadros a partir do quadro "The island of the dead" do Böcklin. Quando não tinha nada para fazer entretinha-se a fazer pequenas interpretações desse quadro e ele fartava-se de dizer (toda a gente sabia isto) que aquilo não era o trabalho dele e que nunca quereria que aquilo fosse mostrado ou tornado público ... e o Nuno Faria foi mostrar aquilo. Acho terrível.

Aquilo era o quê? Como é que ele considerava essas coisas. Eram exercícios para manter a mão?

R: Era, era, era exactamente um exercício para manter a mão.

E porque é que ele escolhia como referente o "The island of the dead"? Não havia aí nenhum interesse particular? Não acredito ...

R: Não sei, se calhar tinha.

Há um bocadinho estávamos a falar de como ele era programático e racional. Há uma história de que ele sonhou uma vez com uma pintura e quando acordou fez um esquema de como a pintura era para se limitar depois a executá-la de acordo com o esquema. Quando chegou ao fim achou que funcionava bem (é curioso, porque era esta a categoria usada para avaliar e determinar o limite de cada obra: funciona ou não funciona). Este passou a ser um modus operandi para ele. Ou seja, todo o processo até chegar ao resultado era mesmo só isso: execução.

R: A partir de determinada altura passou a ser assim mas não foi sempre assim. Mas ele era de facto muito programático nesse sentido. Houve alturas em que o Calhau fazia maquetezinhas de tudo. Fazia maquetes das pinturas (pequeninas) e depois fazia aquilo em grande.

E o que é que acha que ele queria dizer com o: "funciona e não funciona"? Para si também é assim?

R: Era muito intuitivo. Há um lado muito intuitivo. Para si também, de certo, Ana. E para toda a gente. Ao fim e ao cabo (disto é que nenhum artista se pode esquecer), isto são artes visuais, têm a ver com a percepção visual. As coisas podem estar todas certas mas pode não funcionar. Pronto ... e tem que funcionar. Tem a ver com aquelas coisas que não são explicáveis, nem são racionais. Olha-se e vê-se que funciona. O Calhau era muito greenberguiano nesse sentido.

Daquilo que me apercebi, ele era uma pessoa que gostava de viajar e até fazia viagens para ver exposições especificamente. Ou seja, era uma espectador da Arte atento. E era crítico e analítico em relação às coisas que via?

R: Era muito crítico.

E era muito selectivo? Do tipo, via só o que lhe interessava mesmo ou ...

R: Via só o que lhe interessava mesmo. Não perdia tempo a ver coisas que não lhe interessavam.

Estou a pensar também agora na sua condição de Director do IAC. Tinha a responsabilidade de acompanhar e de ver o que se estava a passar, o que se ia produzindo em Portugal e fora.

R: Não sei se você sabe e se é do domínio público, mas o Calhau era um clássico. Gostava era de ir ver os Giottos e os Tiepolos e a Arte Renascentista e dava-lhe muito mais gozo ver isso do que ver alguma Arte Contemporânea. Se o convidassem para ver uma retrospectiva do Donald Judd ele ia a correr, claro! O que ele gostava mesmo era de ir ver uma exposição do Velásquez. Se lhe dessem a escolher entre ir ver uma retrospectiva do Ghirlandaio ou ir à Documenta, ele escolheria imediatamente a retrospectiva do Ghirlandaio. Há portanto este lado muito histórico e clássico que se cola ao Calhau e que a maior parte das pessoas não conhece.

Se calhar, também por aí, ajuda a perceber porque é que ele diz que era um Pintor, de facto, e não um Artista (lato sensu). Tudo aquilo que contribuía para a informação visual dele está muito mais ligado à pintura. A maior parte das questões que o trabalho dele levanta são mais próximas do campo e da prática da pintura (especificamente). A exposição do Ghirlandaio ou do Velásquez ser-lhe-iam mais úteis, provavelmente, como ferramentas operativas.

R: Sim, provavelmente. É capaz de ter razão.

E em relação às gerações mais novas? Ele tinha interesse? Acompanhava?

R: Sim. Era curioso e muito entusiasta. E gostava de apoiar artistas. Gostava muito do Francisco Tropa, por exemplo. Adorava o João Queiroz.

A dada altura na vida do Calhau aparece a Modus Operandi, que era um projecto do Calhau, do Delfim e da Margarida Veiga. Como é que estas três pessoas se aproximaram e se juntaram naquele contexto?

R: A Margarida Veiga estava na Secretaria de Estado da Cultura, lá conheceu o Calhau. Eram muito amigos e andavam sempre juntos. E depois apareceu o Delfim que também foi para lá trabalhar e a páginas tantas tiveram a ideia de montar a empresa. Como estavam lá a trabalhar perceberam que em Portugal não havia ninguém especializado em produção para Arte. E então decidiram montar a empresa.

Mas fizeram muito poucos projectos.

R: Muito poucos. O "Cerco" e poucos mais, porque entretanto se desentenderam. A Margarida e o Calhau saíram e na empresa ficou só o Delfim.

Uma outra coisa importante que eu também queria perceber é como é que o Julião via o trabalho do Calhau no sentido de considerá-lo útil para o seu próprio trabalho.

R: Completamente.

Mas o que é que encontrava de interessante e de estimulante no trabalho dele?

R: Para já o ter a possibilidade de usufruir dele. O prazer de o poder ver de perto. E fundamentalmente é isso porque, se formos ver, o meu trabalho está nos antípodas do trabalho do Calhau. Se calhar era uma espécie de complemento do meu próprio trabalho ... ele tinha aquilo que eu não tinha e vice-versa, aliás eu creio que ele tinha o mesmo tipo de relação com o meu trabalho.

Ele afirma que há uma série de artistas que lhe interessavam (e entre eles está obviamente o Julião) e que, no seu caso, tinha um interesse analítico pelo trabalho mas que era indissociável da relação de amizade que tinham. No caso dele era-lhe impossível separar estes dois lados ... provavelmente a si acontecia-lhe a mesma coisa?

R: sim, sim. A mesma coisa.

Ou acha que o trabalho dele lhe viria a interessar se não tivesse tido essa relação de proximidade e de amizade tão prolongada?

R: É muito difícil ...

E provavelmente, se não tivessem tido a relação que tinham também o trabalho de ambos não se tinha desenrolado da mesma forma ...

R: ... pois provavelmente. De acordo. Acho que eu fui muito influente no Calhau e ele foi muito influente em mim.

Pois, há um terreno comum. E como é que vê o trabalho dele hoje? Apesar de estar fechado na Gulbenkian, como diz, acha que é um trabalho de referência na Arte Contemporânea? (E repare que não estou a limitar-me ao contexto nacional).

R: Absolutamente.

E acha que é um trabalho que (se ele o tivesse querido fazer) poderia ter sido internacionalizável?

R: Completamente. Aliás uma das coisas em que às vezes penso é: se um dia eu agarrasse num destes críticos hot (tipo Jens Hoffman) e o pusesse a fazer uma exposição do Calhau, por exemplo, na Serpentine, não tenho dúvidas de que ia ser um sucesso brutal.

Acha que sim?

R: Acho. Acho que não há nada igual aquilo.

Mas não é o tipo de trabalho que arrastaria massas, ou acha que sim?

R: Não. Nenhum trabalho bom arrasta massas Ana.

O Bruce Nauman. Ora aí está ...

R: Não arrasta massas ...

Mas o trabalho do Calhau na Serpentine, e nesse cenário que imaginou, seria um sucesso mas no contexto específico da Arte exclusivamente, não? A secura da sua natureza não o deixa ser um trabalho atractivo para as massas, nesse ponto de vista.

R: De acordo, seria sempre um sucesso específico no contexto da Arte claro, mas não tenho qualquer dúvida de que seria uma sucesso.

O Julião viu a última exposição em que o Calhau participou, no Pavilhão Branco, com o Rui Chafes? Falou-se, na altura, de uma energia visceral que transparecia nas obras e que até ali não tinha sido testemunhada (ou que era muito mais contida no trabalho anterior e que ali era mais evidente). Tem também esta opinião?

R: Sim. Acho que essa exposição era a abertura para uma quantidade de coisas. Foi a última mas a partir daí surgia uma inflexão diferente no trabalho do Calhau.

E o que é que acha que ele poderia ainda ter feito e acabou por não conseguir fazer a esse nível?

R: Não sei. Sei que, e isto para mim é muito claro, o Calhau sabia perfeitamente que ia morrer e como era muito racional (conversámos várias vezes sobre isto aliás) teve de concentrar em pouco tempo tudo aquilo que queria fazer e que sabia agora que não ia ter tempo para fazer. Se reparar, nos últimos meses de vida do Calhau, o trabalho dele evoluiu com muito mais rapidez do que alguma vez até ali. De tal forma ele era programático que acelerou quando teve, de facto, que acelerar. Ele sabia que queria chegar a um determinado lugar e portanto começou a concentrar e a condensar os sistemas ... e entretanto morreu. Mas essa exposição é um reflexo disso, e por isso é uma abertura para uma quantidade de coisas possíveis.

E era uma boa exposição, apesar de eu nunca ter imaginado o Calhau com o Rui Chafes, porque não vejo nenhuma relação directa entre a obra de um e de outro mas a coisa resultou muito bem, perfeitamente. E não sei como é que surgiu a ideia de fazer a exposição, se foi dos dois ou de alguém exterior.

... o negro ...

R: Sim talvez o negro ...

Ok. Muito obrigada. Quer acrescentar mais alguma coisa, ou acha que há alguma coisa sobre a qual quisesse falar e eu não lhe tivesse perguntado?

R: Não, não há nada. Disse tudo.